8.2.05
Sokolov - Schubert I: a compreensão total
Um programa na Gulbenkian com a sonata D. 959, em Lá maior.
Uma obra notável cujo primeiro andamento é uma construção com uma arquitectura turbulenta caótica, mas profundamente pensada, segundo julgo e trabalhada ao pianoforte pelo compositor. O herói romântico começa a nascer, é impossível dissociar esta obra da doença de Schubert e de um discurso que se elaborou em centenas de lieder e que bebe a sua influência na fonte geradora de revolução, mas também de ordem, de Beethoven. Segundo Brendel: Schubert escolhe o caos, o Sturm und Drang que se aproxima ou já chegou:
"Mesmo nos seus momentos mais caóticos Beethoven escolhe (ou não o conseguia evitar) a representação da ordem, ao passo que a música composta por Schubert chega notavelmente perto do próprio caos."
O Verão de 1828 é o ano de criação desta sonata a par com a sonata em dó menor e sonata em si bemol.
A própria gestualidade dos temas na ligação do intérprete ao piano é complementar, como o professor Robert Hatten mostrou no seu artigo Hatten, Robert. "Schubert the Progressive: The Role of Resonance and Gesture in the Piano Sonata in A, D. 959," Intégral 7 (1993), 38-81. Mesmo sem pensarmos no contraste típico dos temas de sonata, existe uma complementaridade do gesto que explora aspectos heróicos (próprios do romantismo), estéticos, discursivos e as capacidades harmónicas do instrumento. O uso da mão esquerda produzindo som cujos harmónicos entram em ressonância com as notas produzidas pelas cordas mais agudas é particularmente explorado por Schubert. A utilização de divagações harmónicas, que no primeiro andamento não só vão à dominante (mi), mas que frequentemente, no tumulto discursivo do desenvolvimento dos temas, passam pelo modo menor e por tonalidades distantes como o fá maior. O desenvolvimento inicia-se ainda na fase de exposição! A secção tradicionalmente conotada com o desenvolvimento marca-se por uma mudança de acompanhamento e de ritmo na mão esquerda. No final da exposição, em pianíssimo, surge um novo motivo, uma variação se lhe quisermos chamar assim, um ponto mágico. Quando tudo parece terminado, e a sonata repousa já numa reexposição em lá maior depois de ter ficado estável na dominante no final da secção de desenvolvimento, Schubert, com um fogo criador que lhe é próprio neste final de vida vai buscar o tal fá maior com uma tremenda energia em que a coda final é mais um grito de raiva do que uma reminiscência de Beethoven (como tanto se tem escrito).
Neste recital que escutámos ontem os aspectos que Sokolov realçou foram exactamente o discurso heróico de Schubert, as ressonâncias do piano, um pianíssimo extremo e contido (no sentido em que é usado na economia da obra, reforçando o seu lado mágico), na turbulência do caos temático Sokolov encontrou o fio de Ariana deste andamento, a mão esquerda marcou ambientes, harmonias e temas a par da mão direita. O uso do pedal não empastelou o discurso e a géstica. O fraseado foi articulado, articulação foi exactamente a palavra aqui. O recorte e a articulação do gesto foram de tal forma perfeitos, e na medida em que se adaptam à obra, que se diria que Sokolov estudou tudo o que havia para estudar e meditar nesta interpretação.
Se alguém pensasse que Schubert não se tocava assim passaria a pensar de outra forma depois de escutar Sokolov. O que se passou foi também uma lição de reconstrução artística da interpretação de um compositor, foi uma lição de análise, uma lição de estética e de semiótica. A par de uma tremenda emoção e de um sentimento contido, mas tão profundo e tocante que quaisquer palavras são inúteis. Não se pode falar aqui em rubato, não existe rubato no Schubert de Sokolov, ao contrário do Chopin, existe uma métrica. Uma métrica subtil que propulsiona a obra do princípio ao fim de um só fôlego...
Outro aspecto é a construção do som, o doseamento do momento exacto do ataque com a velocidade e peso dos dedos criam inúmeros efeitos tímbricos que Sokolov explora até à exaustão no momento certo, sempre enquadrados no discurso, sempre reforçando a lógica e na economia da obra, sem excessos. Não sei se a obra foi escrita para ser tocada desta forma mas Sokolov faz-nos acreditar, em todos os momentos, na hipótese afirmativa.
Sokolov, o demiúrgo.
(continua)
Uma obra notável cujo primeiro andamento é uma construção com uma arquitectura turbulenta caótica, mas profundamente pensada, segundo julgo e trabalhada ao pianoforte pelo compositor. O herói romântico começa a nascer, é impossível dissociar esta obra da doença de Schubert e de um discurso que se elaborou em centenas de lieder e que bebe a sua influência na fonte geradora de revolução, mas também de ordem, de Beethoven. Segundo Brendel: Schubert escolhe o caos, o Sturm und Drang que se aproxima ou já chegou:
"Mesmo nos seus momentos mais caóticos Beethoven escolhe (ou não o conseguia evitar) a representação da ordem, ao passo que a música composta por Schubert chega notavelmente perto do próprio caos."
O Verão de 1828 é o ano de criação desta sonata a par com a sonata em dó menor e sonata em si bemol.
A própria gestualidade dos temas na ligação do intérprete ao piano é complementar, como o professor Robert Hatten mostrou no seu artigo Hatten, Robert. "Schubert the Progressive: The Role of Resonance and Gesture in the Piano Sonata in A, D. 959," Intégral 7 (1993), 38-81. Mesmo sem pensarmos no contraste típico dos temas de sonata, existe uma complementaridade do gesto que explora aspectos heróicos (próprios do romantismo), estéticos, discursivos e as capacidades harmónicas do instrumento. O uso da mão esquerda produzindo som cujos harmónicos entram em ressonância com as notas produzidas pelas cordas mais agudas é particularmente explorado por Schubert. A utilização de divagações harmónicas, que no primeiro andamento não só vão à dominante (mi), mas que frequentemente, no tumulto discursivo do desenvolvimento dos temas, passam pelo modo menor e por tonalidades distantes como o fá maior. O desenvolvimento inicia-se ainda na fase de exposição! A secção tradicionalmente conotada com o desenvolvimento marca-se por uma mudança de acompanhamento e de ritmo na mão esquerda. No final da exposição, em pianíssimo, surge um novo motivo, uma variação se lhe quisermos chamar assim, um ponto mágico. Quando tudo parece terminado, e a sonata repousa já numa reexposição em lá maior depois de ter ficado estável na dominante no final da secção de desenvolvimento, Schubert, com um fogo criador que lhe é próprio neste final de vida vai buscar o tal fá maior com uma tremenda energia em que a coda final é mais um grito de raiva do que uma reminiscência de Beethoven (como tanto se tem escrito).
Neste recital que escutámos ontem os aspectos que Sokolov realçou foram exactamente o discurso heróico de Schubert, as ressonâncias do piano, um pianíssimo extremo e contido (no sentido em que é usado na economia da obra, reforçando o seu lado mágico), na turbulência do caos temático Sokolov encontrou o fio de Ariana deste andamento, a mão esquerda marcou ambientes, harmonias e temas a par da mão direita. O uso do pedal não empastelou o discurso e a géstica. O fraseado foi articulado, articulação foi exactamente a palavra aqui. O recorte e a articulação do gesto foram de tal forma perfeitos, e na medida em que se adaptam à obra, que se diria que Sokolov estudou tudo o que havia para estudar e meditar nesta interpretação.
Se alguém pensasse que Schubert não se tocava assim passaria a pensar de outra forma depois de escutar Sokolov. O que se passou foi também uma lição de reconstrução artística da interpretação de um compositor, foi uma lição de análise, uma lição de estética e de semiótica. A par de uma tremenda emoção e de um sentimento contido, mas tão profundo e tocante que quaisquer palavras são inúteis. Não se pode falar aqui em rubato, não existe rubato no Schubert de Sokolov, ao contrário do Chopin, existe uma métrica. Uma métrica subtil que propulsiona a obra do princípio ao fim de um só fôlego...
Outro aspecto é a construção do som, o doseamento do momento exacto do ataque com a velocidade e peso dos dedos criam inúmeros efeitos tímbricos que Sokolov explora até à exaustão no momento certo, sempre enquadrados no discurso, sempre reforçando a lógica e na economia da obra, sem excessos. Não sei se a obra foi escrita para ser tocada desta forma mas Sokolov faz-nos acreditar, em todos os momentos, na hipótese afirmativa.
Sokolov, o demiúrgo.
(continua)
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