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13.2.05

Sokolov IV - Considerações finais 

A segunda parte do recital de Grigory Sokolov foi dedicada a Chopin:

Fantasia-Impromptu em Dó sustenido menor (Versão manuscrita, 1835)
Impromptu em Lá bemol Maior, op. 29 (1837)
Impromptu em Fá sustenido Maior, op. 36 (1839)
Impromptu em Sol bemol Maior, op. 51 (1842)
Dois Nocturnos, op. 62 (1845/46) (Si e Mi maior)
Polaca-Fantasia, em Lá bemol Maior, op. 61 (1845/46)

Em Chopin não conseguimos encontrar a mesma transcendência da interpretação dessa obra maior da música de todos os tempos que é a sonata em lá de Schubert. Digamos que Chopin nestas obras é mais acessível, sem querer dizer que seja mais simples ou menor em termos musicais.
Tivemos uma interpretação vigorosa, de um recorte de articulação excepcional, o rubato já foi utilizado de forma mais livre, ou não se tratasse de um programa votado à fantasia e ao improviso, fantasia e improviso que também povoam os nocturnos.
Tivemos um Sokolov sonhador, inspirado, denso, descobrindo atmosferas pouco exploradas em Chopin, como por exemplo o sublinhado muito articulado da voz de acompanhamento que deixa de ser subalterna mas que entra num diálogo subtil com a voz "principal", mercê talvez do uso que Sokolov dá às duas mãos. Dir-se-ia que em Sokolov a frase feita (e com defeitos óbvios) "tem duas mãos direitas" é apropriada num abuso de linguagem que descreve a técnica e interpretação do pianista.
Outra coisa notável é a utilização totalmente diversa do pedal em Schubert e em Chopin. Em Schubert serve para criar ressonâncias e deixa a harmonia passear-se e transfigurar-se em múltiplas modulações; em Chopin, Sokolov utiliza-o como recurso estético criador e motivador da expressividade. Dir-se-ia que em Chopin o pedal serve sobretudo a expressividade e em Schubert serve a arquitectura. Factos que têm a ver com o fôlego das obras em presença e as indicações dos próprios compositores. Se Sokolov tivesse tocado mais uma das últimas sonatas de Schubert (na segunda parte) teríamos um recital violentíssimo do ponto de vista estético, emocional e de esforço para o pianista e público. Percebe-se assim a opção de Sokolov ao recriar os dois compositores, afinal não tão distantes como se poderá crer numa observação prévia e descuidada.

Creio que Sokolov entrou um pouco a frio e menos concentrado na fantasia opus 35, em que depois de um início extraordinário se desconcentrou e se desligou um pouco da obra. Mas sempre a um nível elevadíssimo regressou imediatamente ao nível da primeira parte para nos dar três improvisos construídos por secções, em camadas sucessivas, em recortes parciais, como as obras pedem. Um improviso não é, ad inicio, uma obra de arquitectura (mesmo que em Chopin exista uma grande coerência formal, estruturas circulares, cíclicas, ou mesmo que o improviso sirva para experimentação da forma) e Sokolov explorou a criação destes recortes nestas obras, uma interpretação muito construída, mais uma vez fruto de maturação intelectual evidente.
Os nocturnos foram marcados por uma atmosfera muito lírica. Depois de termos ouvido Sokolov a passear a sua tremenda capacidade analítica em Schubert e a sua tremenda capacidade técnica na articulação, criação de timbres particulares e sonoridades oscilando entre o pianíssissimo e o fortíssimo, sem nunca ferir ou martelar o instrumento, nas obras de Chopin que iniciaram a primeira parte, deixámo-nos repousar na calma falsamente simples dos nocturnos. Um momento quase de repouso antes da tremenda polaca final, uma obra da última maturidade do compositor composta três anos antes da morte pela doença que o debilitaria fatalmente (talvez a fibrose quística, nunca a tão falada tuberculose). Sokolov é para mim melhor em obras de grande fôlego, de dificuldade analítica, em obras com carga dramática. A sua inteligência e capacidade de transmitir o que quer e o que está enterrado nestas obras é quase prodigiosa, ver Sokolov a tocar uma pequena pérola de virtuosismo é quase um desperdício artístico, embora seja um prazer para os sentidos, hedonismo puro...
Os acordes iniciais da polaca opus 61 são uma espécie de pórtico de entrada para um tema muito expressivo, a polaca surge e desaparece submersa pela fantasia... Sokolov deu-nos uma interpretação de um vigor extremo e ao mesmo tempo de com uma grande fluidez de discurso e lirismo, que mais exigir a este grande músico? Sokolov atinge o belo e o infinito através das suas concepções.

Sokolov e o Belo.

De notar também a imensa gama tonal desta segunda parte do concerto, Sokolov entre tónicas dominantes e modulações visitou quase todos os tons possíveis num espectro tonal enorme escolhido dentro da obra de Chopin.

O membros do público, cujos telemóveis, bips e relógios com alarme, estiveram imparáveis no concerto, e abrilhantaram a interpretação de Sokolov com um coro afinadíssimo de tosses cavernosas, secas, expectorantes e guturais que rivalizaram com o piano de concerto com uma energia revigorante. Entretanto as senhoras abriam fechos eclairs de carteiras e bolsas, tiravam pastilhas e rebuçados dos invólucros crocantes e chupavam essas mesmas pastilhas com brio maxilar de grande inspiração. O ressonar de alguns membros masculinos do público, mais profundamente adormecidos nos acordes da profunda música de Chopin e de Schubert, foi um suave contraponto para o grande pianista e um fundo delicado para os pianíssimos, sobretudo os pianíssimos, do genial russo. Belo o despertar final do mesmo público para Sokolov acabar com seis extras! Três trechos de Rameau e três obras de Chopin, segundo creio duas mazurcas e um prelúdio. Um erro meu: confundi pelo menos dois trechos de Rameau com sonatas bipartidas de Scarlatti! O próprio Sokolov encarregar-se-ia de desfazer o equívoco junto de alguns amigos que me avisaram da gafe! Um obrigado a J.A. que telefonou. De qualquer forma as peças barrocas foram um autêntico espectáculo de articulação e digitação, mau grado uma passagem totalmente ao lado no último extra, talvez para contrabalançar com um toque polifónico de um telemóvel que até tinha chocalhos de vaca!
Um pouco mais a sério: um recital histórico de um grande pianista. Um homem generoso e dado ao público, independentemente da sua expressão facial pomposa e hirta!

O início da Polaca Fantasia Op. 61


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