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23.2.05

O Dionisio de Handel 

Reproduzo a crítica publicada no jornal "O Público" da autoria de Cristina Fernandes. Ver: crítica.

Faço-o porque o Público tem como política deixar de disponibilizar os textos ao fim de um certo tempo, o que levará o link acima a deixar de funcionar mais tarde ou mais cedo. A reflexão de Cristina Fernandes é breve. Vou apenas escrever sobre este assunto depois de ter a oportunidade de escutar de novo o "Dionisio Re Di Portogallo", que farei hoje. Como já disse anteriormente a minha impressão é também positiva.
A ópera barroca, e a sua reconstrução hoje, um assunto inesgotável...


O pretexto de D. Dinis...
Por Cristina Fernandes

Écompreensível que na primeira apresentação em Lisboa de uma ópera de Haendel que teve a sua génese num libreto inspirado na história de Portugal (situado no final do reinado de D. Dinis) se procurasse recuperar essa dimensão. Mas também não podemos perder de vista que as diferenças entre "Dionisio, Re di Portogallo" (que se estreou na sexta-feira no São Carlos) e "Sosarme, Re di Media", o título que consta do catálogo de Haendel, não são substanciais e que o processo é até musicologicamente questionável. Haendel simplificou o libreto de Salvi, o nome das personagens foi modificado e a acção transferida para a Ásia menor, a meio da composição, possivelmente por razões políticas. Não se trata pois da estreia de uma versão original de "Dionisio" (que não chegou a existir enquanto tal), mas de uma tentativa de reconstituição do que poderia ter sido a obra se Haendel tivesse mantido o projecto inicial. É certo que o enredo resulta ligeiramente mais consistente quando associado à história europeia, que se recuperaram passagens em recitativo da versão inicial e corrigiram pequenos aspectos da simplificação atabalhoada do libreto, mas não há nenhuma ária que não fizesse já parte de "Sosarme". Como não existem referências musicais explícitas ao contexto ibérico - na prática não é muito diferente ter em palco D. Dinis ou Aliate (rei da Lídia), Sosarme ou Fernando de Castela.
Poderia ter sido a encenação a tornar visível a ligação com Portugal, mas isso não acontece, já que Jakob Peters-Messer preferiu centrar-se na decadência de uma família, "que poderia ser uma família moderna"... Não quero dizer que tivesse de ser assim (nem se pode invocar a questão da "autenticidade" já que no século XVIII os cantores se apresentavam com trajes da sua própria época...), mas reforçar a ideia de que a recuperação de "Dionísio" não tem consequências tão significativas como se poderia pensar na realização concreta do espectáculo, sendo mais um pretexto publicitário.
O que converte esta produção num acontecimento importante desta temporada (que a direcção do São Carlos se viu obrigada a cancelar a partir de 31 de Março por não ter garantias do Ministério da Cultura) é o facto raro de podermos assistir a ópera barroca no São Carlos com instrumentos da época e intérpretes especializados. Não sendo uma das óperas de Haendel dramaticamente mais coerentes, a música é belíssima e o espectáculo funciona bem em linhas gerais, não obstante algumas reservas.
A encenação de Peters-Messer tem algumas ideias práticas hábeis (o dispositivo rotativo alterna interior e exterior) e momentos pontuais conseguidos (o enquadramento da maravilhosa ária "Cuor di madre e cuor de moglie" admiravelmente cantada por Mariana Pizzolato), mas também muitos aspectos inconsequentes e de gosto duvidoso como a cena em que Elvida e Fernando cantam o dueto "Per le porte del tormento". Pode-se invocar que se pretendia ridicularizar um mundo decadente, mas denota grande falta de sensibilidade musical. Esta é uma das páginas mais geniais de Haendel e os timbres e nuances expressivas de Simone Kermes e Lawrence Zazzo ajustaram-se como uma luva, mas escutar música tão sublime mergulhada num pesadelo "kitsch" é um perfeito contrasenso.
No plano vocal, a prestação mais impressionante (a mais genuinamente "Haendeliana") foi a de Pizzolato (com a voz e a sensibilidade ideal para o papel de Isabella), sendo secundada pelo contratenor Lawrence Zazzo (belíssimo timbre e óptima plasticidade vocal) e pela ágil soprano Simone Kermes, se bem que mais superficiais do ponto de vista dramático. Destaca-se também o Sancio do contratenor Max Emanuel Cencic. Dionísio merecia uma voz menos baça e uma interpretação mais imponente que a do tenor Stefan Rankl, Michelle Andalò (Alfonso) esteve num plano intermédio e Vladimir Baykov (Altomaro) revelou-se uma escolha infeliz devido ao excessivo vibrato e a problemas de afinação e agilidade. Quanto à prestação do Complesso Barocco e à direcção de Alan Curtis, não sendo tão imaginativa ou arrojada como a de outros agrupamentos vocacionados para este repertório e tendo até algumas falhas (afinação nos "soli" de violino, deslizes nos oboés e trompas), funcionou em geral bem e evidenciou uma compreensão estilítica competente da música de Haendel.

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