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3.2.05

Medeia de Cherubini – Aspectos Cénicos 

Lemos na Crítica de A.M. Seabra que este tudólogo não gostou da encenação de Luís Miguel Cintra nem dos figurinos e cenários de Cristina Reis. Nós também não. Ao contrário de A. M. Seabra passamos a explicar as nossas razões.
Luís Miguel Cintra baseou a sua encenação na liberdade que a música teria sem o estorvo de grandes movimentações cénicas. O libreto francês é de François-Benoit Hoffman e a versão italiana de Carlo Zangarini. O drama desta ópera parece-me ser o seu percurso desde a secretária de Cherubini, à primeira tradução alemã de Herklotz seguida da tradução de Treitschke em 1802, com supervisão do próprio Cherubini que cortou muitos compassos, a revisão de Larchner muito posterior, com incorporação de recitativos e a tradução desta versão para italiano de Zangarini em 1909. O ideal para Callas, uma ópera de uma mulher só, que ressuscita esta versão italiana nos anos cinquenta. Chega a interpretar a ópera tendo Vickers como Jasão ao seu serviço, digamos assim.
Penso que se perdeu uma oportunidade histórica de recuperar a versão original de 1797. Não faço a menor ideia se esta ópera, que escutamos presentemente no S. Carlos, tem alguma coisa a ver com a partitura original. O que é certo é que os recitativos contrastam vivamente com a música de Cherubini impedindo qualquer hipótese de encenação da acção de forma credível. Cintra viu-se metido numa camisa de onze varas, um libreto adulterado, uma obra baseada numa tragédia grega mas escrita numa estética totalmente diversa e, pior, incoerente na sua própria estrutura interna. Era quase uma condenação prévia ao fracasso. Apenas uma leitura musical de altíssimo nível poderia salvar o lado cénico...

A ópera conta com com Medeia mulher desprezada por Jasão um aventureiro sem escrúpulos, de quem tem dois filhos, Jasão vai casar com Glauce, que é um bom partido pois é filha de Creonte rei de Corinto. Neris acompanha Medeia, Glauce tem duas aias e ainda intervém um capitão da guarda. O personagem extra que não aparece no programa é a orquestra que surge como um elemento de grande peso em toda a partitura, não faz apenas acompanhamento, tem um papel essencial no decorrer da acção, caracterizando os momentos decisivos e introduzindo cada acto com um prelúdio, ou abertura como se queira chamar (uma abertura e dois entreactos) que marcam o momento na tragédia. A declamação francesa original era o motor da acção que prosseguiria nos coros, duetos, árias, etc... Os recitativos congelaram de certa forma a acção hieratizando os personagens e debilitando o discurso dramático, pelo menos assim o concebo na minha visão muito distorcida pelo facto de não conhecer (alguém conhece?) a partitura original, que segundo julgo saber nunca foi gravada.

Mas vamos para a encenação, a primeira coisa curiosa e que ressalta à vista são as ruínas que minam a boca de cena. A acção passa-se em Corinto, a encenação é historicista e não centrada numa tragédia intemporal. Poder-se-ia pensar que aqueles cacos que representam estátuas e colunas fragmentadas, com uma mão colossal de mármore em destaque do lado direito, são os destroços do teatro grego ou os destroços de um tempo antigo que já não faz sentido no período em que o libreto de 1909 foi escrito. Mas então entramos em contradição com os figurinos e a representação com coro grego em cima do palco, a maior parte das vezes sem participar na acção ou no comentário, também um coro inútil, uma espécie de destroço também ele de um teatro que já não faz sentido depois de Büchner e Ibsen.
É que no tempo da Corinto onde se passa a acção não era suposto haver ruínas gregas, os templos e as estátuas estavam bem de pé! Resta uma hipótese: aquilo ali está apenas para disfarçar a caixa do ponto! Lá está ela, uma pedra volumosa bem no centro com a forma exacta para esconder o ponto! Está explicado este primeiro mistério cenográfico.
Em segundo lugar a encenação vai pelo lado sério, a ópera mete medo a Cintra? É que vistas as coisas o libreto de 1909 redunda numa total inverosimilhança relativamente à visão da ópera “Medea” como tragédia grega. Trata-se de uma ópera do final do século XVIII desfigurada e alterada para o gosto alemão do romantismo e depois para o gosto do público italiano do início do século XX, uma ópera recuperada por uma diva que procura o mito e, por acaso ou talvez não, até o consegue atingir. Encená-la como uma vera tragédia grega é ceder ao gosto fácil e anacrónico de quem mutilou e remexeu no texto original e na música original de Cherubini.
Vamos agora para as marcações: Cintra procura dar espaço à música, assim o diz. Mas isso é renegar totalmente a herança de Gluck da qual Cherubini foi portador. A encenação e o teatro têm de estar presentes. Marcações esquemáticas, deambulações dos protagonistas em meia dúzia de passos, posições hirtas, movimentações hieráticas, gestos lentos e pomposos. Falta contacto humano nesta encenação, falta conflito interior nos personagens prisioneiras dos seus dilemas que acabam por estar prisioneiros dos gestos de um teatro que desapareceu há muitos anos. Jasão hesita, dialoga com Medeia, tem piedade, recorda o velho amor pela mulher que repudiou, de forma distante, de longe. As movimentações de massas são sempre esquemáticas.
Os figurinos são, nesta perspectiva desastrosos, se pretendíamos uma representação histórica da Grécia antiga perguntamos o que faziam aquelas espécies de burkas no corpo dos desgraçados cantores? Seria para abafar os gritos dos sopranos que tão feios soavam? Nesse caso devia ser preferível a burka integral, ao menos a boca ficava tapada... É que aquela espécie de Shador metido na cabeça de homens e mulheres é esteticamente abominável. Por outro lado a pompa excessiva das roupas de homens nos papeis principais nada tem a ver com roupa do tempo grego. Os figurões vestidos de armadura dourada parece que estavam a desfilar na moda Lisboa em vez de serem figurantes credíveis de uma ópera num teatro do século XXI e numa capital europeia. Sobrou o vestido vermelho de Medeia no último acto e era exactamente igual ao célebre vestido da Callas no Pasolini. Aposto que se trata do mesmo figurino, ou então teve uma inspiração muito próxima. Impunha-se uma linha de vestuário muito mais discreta e simples, mais dentro da intemporalidade do mito se se queria atacar a ópera pela óptica da tragédia grega.
Eu teria visto de forma mais saudável uma abordagem irónica desta espécie de tragédia em versão operática italiana requentada. Achei a cena do casamento de Jasão com Glauce no fundo do palco, comentada em primeiro plano pela protagonista como o momento melhor conseguido do ponto de vista estético. Um ponto em que até as roupas do coro resultavam devido ao efeito da luz difusa nas cabeças.
A entrada de Medeia no terceiro acto que poderia ser um momento de grande impacto visual em que se pedia tudo menos o mau gosto acabou por ser um momento de gargalhada de uma cena dos Monty Python. Explico, no alto de uma escadaria abre-se uma fenda iluminada de luz por detrás, a orquestra toca um prelúdio ao terceiro acto de grande dramatismo (um dos momentos mais falhados de todo o conjunto em termos musicais). Todo o ambiente é negro, com excepção da fenda enorme por onde surge Medeia, vestida de forma deslumbrante com o tal vestido vermelho, um vestido que dá uma força tremenda ao personagem: ao mesmo tempo demoníaca, ao mesmo tempo despojada e abandonada. Surge Medeia com uma faca na mão! Que impacto visual. De repente Medeia hesita, volta para trás, aparece de novo, e de novo, e passeia-se mais atrás, parece que se esqueceu das chaves do carro, ou teria sido do telemóvel, assoma de novo e volta, olha para a faca e por diante. Conjugado com a chinfrineira que irradia da orquestra, uma desafinação atroz, notas erradas, entradas desacertadas, tempos cruzados foi de rir até às lágrimas, parecia uma anedota. Se Cintra tivesse feito como em tudo o resto e colocasse a personagem no centro de forma visualmente presente, imponente e trágica, teria certamente obtido um efeito digno, apesar da tragédia continuar no fosso. No momento em que deveria ter optado por uma posição mais hirta destrói tudo e inventa umas marcações anedóticas. A hesitação de Medeia sente-se depois e não necessita de sublinhados visuais redundantes. O ponto onde se exige contenção é o único onde Cintra a evita.
Finalmente o supremo mau gosto é a cena final onde uns bailarinos totalmente descabidos aparecem com umas serpentes de carnaval na mão, mascarados de múmias. Acaba assim em género de danação de D. João a última tragédia grega do século vinte...
Por outro lado o mau gosto de Dimitra Theodossiou em levantar os braços para cima a para baixo nas notas mais agudas e nas passagens mais a puxar ao aplauso seriam dispensáveis e deveriam ser reprimidas pelo encenador. Dimitra é uma cantora de qualidade que dispensa essas cenas à diva. Pelo menos tem a confiança em palco de estar convencida que é uma grande cantora, esse narcisismo aparente da cantora é uma qualidade que não deve ser transformada em banalidades cénicas de gosto duvidoso e datado.
Dando espaço à música Cintra arriscou-se a depender da realização musical para que a encenação resultasse. Como a realização de Letonja e da OSP falhou em toda a linha está bem de perceber o que aconteceu...

Aspectos vocais e de representação teatral
Medea - Dimitra Theodossiou. Parece que a ópera foi escrita para a sua voz e a sua presença. Muito extensa na tessitura vocal, capaz de dominar totalmente a vocalidade e incansável para estar em palco quase do princípio ao fim da ópera. Estudou de forma notável o papel. Segundo quem assistiu à primeira récita parece que estava ainda pouco fluida e ainda a tactear ligeiramente o personagem. Na terceira récita acabou por ser notável, sem ter uma voz absolutamente perfeita, mostrou alguma dureza nos agudos em fortíssimo que já lhe tinhamos notado anteriormente. Perfeita nos médios e graves, tão presentes nesta ópera. Foi capaz de modificar o timbre para ser sibilina e cruel, ser dominadora, ser digna de dó, ser ternurenta para as crianças e ao mesmo tempo assustadora, foi criminosa mas também foi imponente. Uma voz cheia de harmónicos, rica e colorida, uma actriz com enorme sentido dramático, uma presença. No mundo em que vivemos ter o privilégio de a escutar compensou de certa forma o resto. Uma preparação exemplar desta ópera, durante meses e meses que lhe vai valer um sucesso enorme sem sombra de dúvida. Fez quase tudo bem e cantou de forma muito bela.
Esperamos que não resolva cair naquele mau gosto de levantar os braços para chamar as palmas nas passagens mais fáceis de atrair o aplauso pela veia da nota em fortíssimo ou da passagem mais aguda. Theodossiou merece melhor do que isso...

Glauce - Annamaria del'Oste. Uma caracterização de uma mulher frágil feita com competência, no entanto a sua voz não é a indicada para o papel, muito pouco dotada de corpo harmónico (segundo) e de metal (terceiro) acabou por se ouvir correcta mas com uma sonoridade magra e fria.

Giasone - Stefano Secco. Uma voz poderosa e quente. Atormentado pela angústia de rever Medeia, este homem inconstante que é Jasão foi muito bem caracterizado por Secco. Entrou francamente a frio e mal no início mas recompôs o personagem e a voz e acabou por ser muito convincente. Um tenor que pode aspirar a cantar mais do que o Rodolfo e este Giasone. Uma voz que ao evoluir naturalmente acabará no tenor dramático, se não me engano muito. Tem corpo e presença vocal, tem agudos sonoros e metálicos. Será muito interessante ouvir Secco num papel de maior protagonismo.

Neris - Nidia Palacios. A acompanhante de Medea foi convincente também. A ária do segundo acto foi interpretada com grande rigor e concentração. Uma voz com pouco corpo mas com um timbre que me agradou muito, acabou por superar pelo lado da representação teatral e pelo lado da interpretação musical.

Ana Ferraz, Oriana Kurteshi e José Corvelo estiveram correctos, mas as suas intervenções são muito breves, seria injusto fazer uma avaliação mais profunda, até porque notámos algumas falhas pequenas que, neste contexto, seriam demasiado enfatizadas para quem teve uma prestação francamente positiva.

Coro - gritaria e desacerto musical foram o pior deste coro, chegou a ser feio. Não há tanta desafinação como anteriormente, mas qual a razão de quererem todos ser solistas? Cantar num coro implica entreajuda, coesão e corpo comum. Estiveram bem nas marcações indicadas por Cintra, ou seja: entraram e sairam de forma coordenada do palco e mexeram-se, pouco, no momento certo...

E assim acabam as reflexões deste blog sobre a Medeia de Cherubini no S. Carlos. Uma aposta ganha? O balanço final é de alguma desilusão após ter esperado uma grande produção, recordo que esta Medeia é dirigida por um grande encenador português e um maestro que aprecio vivamente, tem cantores de alta qualidade vocal e uma orquestra e coro que vinham a subir de forma.
Talvez nem toda a gente veja as questões de forma tão séria e apaixonada como eu a vejo. Talvez algo tenha corrido muito mal no dia em que assisti ao contrário dos outros dias, a acreditar em M.P. que esteve na estreia e que neste artigo fez a crítica neste blogue, parece que a estreia correu um pouco melhor mas também com muitos problemas na orquestra.
Como gosto tanto de música e tenho uma verdadeira paixão pelo assunto, acabo por ter uma grande exigência. Um ideal que nunca se alcança mas que às vezes está próximo. Creio que neste caso o ideal esteve muito longe de ser alcançado, mas no balanço final o esforço do S. Carlos pode ter dividendos no futuro e, nessa perspectiva, ser visto como positivo. A encenação pode ser melhorada, os figurinos podem ser aperfeiçoados, o cenário acaba por resultar se esquecermos as ruínas na boca de cena. A obra pode ser mais trabalhada do ponto de vista musical.

Mas o mais importante, e não estou a dizer que o soprano vale mais do que uma ópera, ou não teria escrito o que escrevi antes, esta produção tem o lado positivo de mostrar uma grande cantora num grande papel. Dimitra Theodossiou é mesmo uma cantora de primeira ao contrário do que se dizia no foyer do S. Carlos.
Será isso que poderemos ler no próximo Expresso: o elogio de Dimitra por Jorge Calado, quase apostava a minha mão direita...

H. Silveira

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