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23.2.05

A última récita 

Hoje foi a última récita do "Dionísio Re di Portogallo" de Handel que foi muito superior à da estreia. Um encantamento a música de Handel. Suprema a arte dos sons que tem Handel como arauto.
Pela música sublime de Handel, pela sucessão extraordinária de beleza e encanto musical, numa lógica dramática e musical de uma intuição e génio eternos, valeria a pena escutar Handel pela segunda vez e pela terceira e quarta... O que resulta mais interessante é que à segunda leitura se notam com mais evidência os detalhes, os pensamentos do encenador, os tiques dos cantores/actores, a filigrana musical.
Descobrimos ainda que a braguilha aberta do contratenor Zazzo no início do último acto não é uma ideia de encenação radical e chocante ou uma alusão ao dia de pagamento. Repare-se que no dia em que a obra foi estreada a direcção do S. Carlos estava ainda à espera que a tutela pagasse qualquer coisa. Um acto falhado? Depois do beijo na boca do filho Afonso à mãe Isabel... Onde estão as rosas senhora? Beijo que revela a tentativa do encenador de situar o contexto no complexo de Édipo. Isto depois da tentativa de choque e confronto com a homofobia de algum público, em jeito provocatório, com as carícias homossexuais trocadas entre Fernando e Sancho logo de início. Uma braguilha aberta, que numa simbólica e retórica de encenação toda ela pensada poderia ter significados ocultos e profundos. A entrada no último acto toda cheia alusões ao século em que a ciência se torna a rainha do mundo. Lentes, telescópios, sólidos perfeitos, razões douradas, pentagramas divinos. Será a braguilha o símbolo da virilidade e fecundidade? A exibição de espadas desembainhadas, punhais, pistolas e outros objectos de contemplação dá precisamente a ideia do símbolo fálico, da masculinidade presente e obsessiva no próprio espírito do autor da encenação. Essa presença é, aliás, manifesta na penetração que o acto homicida de Afonso relativamente a Fernando encerra, já presente no libreto original, a ferida pelo aço em duelo é um acto de penetração não fecundo, tal como a relação homossexual entre dois homens. No libreto original funcionava como "susto" pregado ao espectador barroco e que despertava emoções que seriam exploradas pela música: uma ferida superficial, tal como as carícias entre Fernando e Sancho e que não mais serão exploradas pelo encenador.
Alguns críticos terão ficado a nadar em oceanos de perplexidades com tanto choque e mensagem. Uma problema quase escatológico: a decifração semiótica desta encenação, também ela barroca de significantes.
A braguilha afinal parece que se tratou de um descuido do cantor, a suprema angústia semiótica acaba em banal gesto de distracção: hoje, no mesmo lugar, no mesmo tempo simbólico, Fernando de Castela estava mais composto. Um descuido que, na estreia, deixou algum sector do público, onde eu me encontrava, à beira de um ataque de riso. Ataque que poderia ter arruinado toda e qualquer hipótese de uma recepção atenta da obra...

Mas temos panos para mangas, e voltaremos a esta questão. Se a estreia tinha sido positiva a última récita foi a caminho do excelente.

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