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26.2.05

A encenação do Dionisio de Handel - Breves notas 

Na ópera barroca como o Dionisio Re di Portogallo a acção dramática é um pretexto para explorar conflitos, para gerar emoções, para expor uma moralidade. A verdade histórica, o local da acção, o próprio tempo, são conceitos muito relativos. O importante é gerar estados de alma, criar o belo através da música.
O encenador, no século XXI, propõe a história da decadência d(um)a família. Começa, ainda na abertura, por nos mostrar em palco o clã de D. Dinis, numa pose de um retrato dos anos vinte do século XX com uma moldura enorme que enquadra os cantores/actores.
O encenador Jakob Peters-Messer conhece certamente a partitura a fundo, uma vez que toda a encenação é marcada pela música. Vejamos as árias da capo, do tipo A-B-A, todas sem excepção foram encenadas em três partes: durante a exposição da secção A, o cantor parava frente aos espectadores. Na secção B, surgia uma alteração de cenário, entrava ou saía alguém de cena ou então aparecia uma cena paralela, evocativa, de género cinematográfico. Estes efeitos foram sublinhados pela estrutura cenográfica central, enquadrada pela moldura de uma fotografia gigante que gerava vários contextos: desde o beco urbano à janela para o mundo, passando pela sala laboratório-observatório de Fernando de Castela na entrada do último acto.
Sempre que se passava à relativa menor lá entravam uns figurantes, sempre que Handel modulava, já o espectador sabia que alguma coisa iria acontecer. Veja-se o exemplo da ária dos passarinhos: A cantora começa a expor a secção "A" sentada na cadeira rotativa, quando passa à dominante reclina-se na cadeira ficando quase deitada e dando voltas sobre si própria, na secção "B" levanta-se e canta virada para o público, volta à secção "A", entra D. Fernando e vai escutando a sua amada a cantar. A cadência, de uma série de cadências muito bem escritas por Alan Curtis, é cantada quase a cair nos braços de D. Fernando que a segura por detrás sem esta se aperceber. D. Isabel, nas suas árias, a do primeiro acto por exemplo, tem uma cena paralela no campo de batalha. No dueto mais belo da ópera D. Fernando e Elvida cantam um para o outro na secção A, na secção B abrem a janela para os jardins, aliás muitíssimo feios, diria mesmo pirosos, e cantam para fora. No regresso à secção A cantam virados para o público cada um a segurar a sua portada da janela. Que estranho amor este tão distante...
A ária mais comovente de Isabel, quase no final, é pautada no início da secção B pela presença do marido e do filho em lados opostos da cena, quase como se estivéssemos num filme (o Padrinho por exemplo), preparando-se para o duelo que se pressupõe fatal.

Uma encenação totalmente simétrica, linear, em termos de marcações ditadas pela música.
Por outro lado estou em crer que o encenador vai longe demais ao tentar levar a história para a decadência da família, ao tentar entrar em todas as épocas, desde a idade média, passando pelo século XVIII até hoje. É uma tentação óbvia a questão do complexo de Édipo numa luta entre pai e filho com a mãe pelo meio. O beijo na boca de D. Afonso a sua mãe, Isabel, é demasiado grosseiro para não deixar de parecer uma piscadela de olho, fácil, à suposta capacidade de reconhecimento dos símbolos pelo público. Quem percebe a história não precisa do bordão desse beijo. Por outro lado Isabel é personagem demasiado positiva para ser vista como uma neurótica dependente de medicamentos, drogas, que a sua filha lhe retira das mãos de vez em quando...
O encenador observa bem a dicotomia entre o par Fernando/Elvida e o resto dos personagens. O par amoroso veste de branco, contrastando com as outras indumentárias. Realmente a música separa bem este par, chegando a ser incongruente a felicidade do casal enquanto o drama da sua família se aproxima de uma decisão fatal. Em vez de disfarçar e assobiar para o lado, o encenador optou por mostrar essa mesma diferença, chegando ao ponto, quase irreal, mas mágico, de, no final, colocar todos os personagens em estado de encantamento enquanto o par canta o seu último dueto de amor, acordando precisamente todos os membros da família, incluindo Altomaro o vilão que já estaria morto, quando faz o regresso final à secção "A" da estrutura A-B-A.
O encenador optou pela fábula, uma fábula cheia de referentes, prolixa na simbologia. A decadência da família: no tempo? Entre o tempo de Dinis e hoje? A coroa e a lata? A morte dos deuses? Isabel (a Santa) neurótica e deprimida, a morte da religião? Um amor à primeira vista puro, mas onde está o drama da homossexualidade não assumida de Fernando? A fábula da hipocrisia?
Enfim, uma encenação cheia de pistas para pensar. No meu entender tem o defeito de ser previsível em demasia, o que atingiu o cúmulo de se tornar irritante. Mudou de tom: acontece algo em palco, quem virá a entrar ou a sair? Uma encenação totalmente subordinada à partitura de Handel.
Afinal quem pode censurar Jakob Peters-Messer? Afinal o génio aqui é mesmo Handel, com a música deslumbrante que compôs para esta ópera... Outros aspectos menos conseguidos são, no meu entender, as cenas à filme de gansgster de série B ou de série televisiva americana, com o gang atrás de D. Afonso, ou o capo mafioso que D. Dinis parece ser; inútil na economia da obra. Como desajustado é o conceito de uma pistola poder ser "ferro" ou "aço que trespassa" ficando no cérebro a ressonância amarga e persistente da contradição entre o visual e a palavra.
No final a mesma fotografia que abriu a ópera, uma fotografia congelada no tempo, no meio uma fábula e a música de Handel, parece que tudo está igual. É falso, nas breves horas que se passaram, nós mudámos, envelhecemos, estamos mais ricos.
Não gostei de tudo na encenação mas tem um grande mérito: obriga a pensar e deixa-se conduzir pela música, mesmo que às vezes o que aparece em palco esteja distante daquilo que a música nos diz.


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