19.2.05
Concerto na Gulbenkian - Nelson Freire
Não sei se os nossos leitores repararam, mas no post Os melhores mostramos fotografias de alguns dos maiores músicos de todos os tempos, neste caso tenores e maestros. À excepção de Vickers, em traje cénico, a tónica é a correcção e a elegância no vestuário. Carlos Kleiber, mesmo sem a casaca e o laço branco, é de um refinamento e elegância extraordinários.
Não se passa o mesmo com a orquestra Gulbenkian e nunca esperei vir a escrever isto sobre esta instituição. A casaca, traje de cerimónia não é uma espécie de fato de macaco para ser usado por uma tropa fandanga de maltrapilhos. O uso do vestuário de cerimónia tem regras próprias. O colete branco é quase indispensável, a cinta que deve ser usada por todos ou por nenhum de acordo com o colete e a cor própria, o sapato que deve ser de verniz (ou pelo menos com polimento uniforme) e com atacadores, as peúgas pretas e finas. A camisa com os colarinhos próprios e os punhos engomados e os botões brancos (e não a incrível variedade de modelos). A camisa deve estar bem presa e não com a fralda de fora (como vimos na quinta feira em muitos violinistas). A barriga de certos músicos fora das calças, sem cinta nem colete é uma visão altamente desagradável. O aprumo é essencial e marca de estilo. A banalização da casaca é um triste paradigma em muitas orquestras, em que os músicos a utilizam sem brio. O mesmo se aplica às senhoras que têm penteados do tempo da Maria Cachucha ou então vão à cabeleira da Maria Armanda, ou não vão de todo e, em grande parte, vestem sem o menor gosto. A Gulbenkian tem de estudar a hipótese de contratar um consultor para a área do estilo das senhoras da orquestra.
Grandes orquestras do mundo, lembro a Filarmónica de Berlim, quando não tocam em noites de gala, têm como padrão de vestuário um fato escuro e gravata para os senhores e um vestido escuro para as senhoras. A utilização deste traje tem a vantagem de não transformar a casaca numa espécie de fato de macaco para toda a obra, acabando os músicos por se apresentarem com ar amarrotado e pouco engomado.
A mesma falta de brio que tem forçosamente de se reflectir na execução.
Sendo assim apenas comento a interpretação por parte de dois músicos: o contrabaixo Alejandro Erlich-Oliva, que se destaca pela forma impecável como os seus sapatos brilham e Carlos Voss nos tímpanos pelo uso apropriado do colete branco da ordem. Provavelmente outros estariam também em condições, mas do local onde estávamos apenas conseguimos descobrir estes dois elementos masculinos vestidos com aprumo. Estes músicos tocaram com aprumo, ritmo e empenho, Voss foi enérgico e muito inspirado na execução dos seus tímpanos, sempre a compasso e concentrado. O mesmo se poderá dizer do excelente contrabaixista: sempre a tempo, concentrado. Gostámos. Sobre o resto da orquestra: recusamos qualquer crítica positiva a maltrapilhos, passe o aparente excesso do termo. Do maestro Foster e do seu bibe preto já falámos por diversas vezes, um mau exemplo que persiste.
Uma primeira parte em que o concertino Rowlands nos deu dois romances op. 40 e 50 de Beethoven, numa interpretação francamente melhor no segundo romance, o mais conhecido, em que esteve muito poético e com uma bela sonoridade.
O exercício de três Leonoras de Beethoven foi maçador, bom para um programa de rádio, ou para três concertos, nunca para o mesmo e longuíssimo programa de concerto público. A orquestra nesse ponto foi um pouco melhor, mais empolgada do que no Brahms que se seguiu, mas ressaltou uma interpretação trapalhona. Urge dar algum brio a esta orquestra...
Nelson Freire não foi tão perfeito como se esperava em Brahms, concerto nº 2. Uma leitura que a certa altura nos pareceu algo mecânica e que chegou a atingir uma situação complicada quando se ouviu um toque de bip ou telemóvel que não parava de tocar, o pianista visivelmente desconcentrado pelo ruído entrou em total desacerto e falhou uma passagem inteira do primeiro andamento. Nota: parece que se ligam os telemóveis no intervalo e se esquecem na segunda parte. O aviso deve ser emitido também na segunda parte do concerto: "Se ligou o telemóvel no intervalo aproveite agora para o desligar..." Nota-se que os toques ocorrem sempre depois do intervalo.
O segundo andamento foi muito bom, o allegro apassionato, que eu não diria inquietante, mas sim "mesmo apassionato", tocado de forma muito subtil, com um toque de veludo e com um ritmo pujante, mas controlado.
Um terceiro andamento, andante, tocado com serenidade e intimismo, com algum rubato excessivo nas passagens totalmente a solo. As madeira foram muito rústicas, sonoridades algo agrestes e mesmo desafinadas. Clarinetes, sobretudo o segundo mas também o primeiro, em baixo de forma, o que aliás se notou no resto do concerto de Brahms. Flauta anémica, com sonoridade escolar. Vibrato demasiadamente marcado no violoncelo, o que para mim é excessivo e irritante. Outro aspecto foi a ausência de um número apropriado de violoncelos, sete apenas, um número demasiadamente pequeno para emprestar pathos, tensão, vibração interior e sonoridade espessa e densa aos graves da orquestra. Notou-se essa mesma falta de vibração e tensão em toda a obra de Brahms. Este compositor é de abordagem complexa em termos sonoros e na coesão orquestral, os pizzicatos foram também irregulares e desacertados, a visão de Foster (e do seu bibe preto) não nos pareceu apropriada à idiomática do compositor. Demasiado directa e pouco subtil, pouco dramática.
Um belo allegretto grazioso, mais allegro do que allegretto, terminou um dos concerto mais importantes, e belos, da literatura concertante de todos os tempos. Nelson Freire aqui conseguiu redimir de forma convincente o relativo apagamento do primeiro andamento. A orquestra tocou como vestiu, rústica e trapalhona, uma nota elevada para Nelson Freire, uma nota muito mediana para a orquestra.
Os extras foram Gluck, da ópera Orfeo ed Euridice, uma transcrição... E uma obra de Heitor Villa-Lobos (obrigado a quem nos confirmou esta teoria). Excelente em Gluck, com um toque muito poético, não tão bem em Villa-Lobos com algumas notas ao lado.
P.S.: Os funcionários da segurança continuam a não se mostrar, também eles, dignos da casa e da tradição da Gulbenkian. Um senhor com ar pesadão e fato escuro, de intercomunicador afivelado sobre a orelha, conspícuo como o botão que falta na estátua do D. Pedro V em Castelo de Vide, no final do concerto lá estava encostado ao palco, "vigilante". Casaco desabotoado e aberto, mãos nos bolsos, vasta barriga saliente por fora das calças, um pé no chão, outro encostado à madeira do palco, faltava apenas um palito nos dentes e uma casca de tremoço a ser cuspida para o chão.
Os outros cavalheiros da segurança continuam com fardas obscenamente gritantes numa casa com as tradições da Gulbenkian. Será a lei que impõe que os gorilas que patrulham os perigosos intervalos dos concertos sejam obrigados a ter estas fardas?
Impõem-se umas lições de boas maneiras e boa conduta a estes senhores, de certo modo castiços...
Não se passa o mesmo com a orquestra Gulbenkian e nunca esperei vir a escrever isto sobre esta instituição. A casaca, traje de cerimónia não é uma espécie de fato de macaco para ser usado por uma tropa fandanga de maltrapilhos. O uso do vestuário de cerimónia tem regras próprias. O colete branco é quase indispensável, a cinta que deve ser usada por todos ou por nenhum de acordo com o colete e a cor própria, o sapato que deve ser de verniz (ou pelo menos com polimento uniforme) e com atacadores, as peúgas pretas e finas. A camisa com os colarinhos próprios e os punhos engomados e os botões brancos (e não a incrível variedade de modelos). A camisa deve estar bem presa e não com a fralda de fora (como vimos na quinta feira em muitos violinistas). A barriga de certos músicos fora das calças, sem cinta nem colete é uma visão altamente desagradável. O aprumo é essencial e marca de estilo. A banalização da casaca é um triste paradigma em muitas orquestras, em que os músicos a utilizam sem brio. O mesmo se aplica às senhoras que têm penteados do tempo da Maria Cachucha ou então vão à cabeleira da Maria Armanda, ou não vão de todo e, em grande parte, vestem sem o menor gosto. A Gulbenkian tem de estudar a hipótese de contratar um consultor para a área do estilo das senhoras da orquestra.
Grandes orquestras do mundo, lembro a Filarmónica de Berlim, quando não tocam em noites de gala, têm como padrão de vestuário um fato escuro e gravata para os senhores e um vestido escuro para as senhoras. A utilização deste traje tem a vantagem de não transformar a casaca numa espécie de fato de macaco para toda a obra, acabando os músicos por se apresentarem com ar amarrotado e pouco engomado.
A mesma falta de brio que tem forçosamente de se reflectir na execução.
Sendo assim apenas comento a interpretação por parte de dois músicos: o contrabaixo Alejandro Erlich-Oliva, que se destaca pela forma impecável como os seus sapatos brilham e Carlos Voss nos tímpanos pelo uso apropriado do colete branco da ordem. Provavelmente outros estariam também em condições, mas do local onde estávamos apenas conseguimos descobrir estes dois elementos masculinos vestidos com aprumo. Estes músicos tocaram com aprumo, ritmo e empenho, Voss foi enérgico e muito inspirado na execução dos seus tímpanos, sempre a compasso e concentrado. O mesmo se poderá dizer do excelente contrabaixista: sempre a tempo, concentrado. Gostámos. Sobre o resto da orquestra: recusamos qualquer crítica positiva a maltrapilhos, passe o aparente excesso do termo. Do maestro Foster e do seu bibe preto já falámos por diversas vezes, um mau exemplo que persiste.
Uma primeira parte em que o concertino Rowlands nos deu dois romances op. 40 e 50 de Beethoven, numa interpretação francamente melhor no segundo romance, o mais conhecido, em que esteve muito poético e com uma bela sonoridade.
O exercício de três Leonoras de Beethoven foi maçador, bom para um programa de rádio, ou para três concertos, nunca para o mesmo e longuíssimo programa de concerto público. A orquestra nesse ponto foi um pouco melhor, mais empolgada do que no Brahms que se seguiu, mas ressaltou uma interpretação trapalhona. Urge dar algum brio a esta orquestra...
Nelson Freire não foi tão perfeito como se esperava em Brahms, concerto nº 2. Uma leitura que a certa altura nos pareceu algo mecânica e que chegou a atingir uma situação complicada quando se ouviu um toque de bip ou telemóvel que não parava de tocar, o pianista visivelmente desconcentrado pelo ruído entrou em total desacerto e falhou uma passagem inteira do primeiro andamento. Nota: parece que se ligam os telemóveis no intervalo e se esquecem na segunda parte. O aviso deve ser emitido também na segunda parte do concerto: "Se ligou o telemóvel no intervalo aproveite agora para o desligar..." Nota-se que os toques ocorrem sempre depois do intervalo.
O segundo andamento foi muito bom, o allegro apassionato, que eu não diria inquietante, mas sim "mesmo apassionato", tocado de forma muito subtil, com um toque de veludo e com um ritmo pujante, mas controlado.
Um terceiro andamento, andante, tocado com serenidade e intimismo, com algum rubato excessivo nas passagens totalmente a solo. As madeira foram muito rústicas, sonoridades algo agrestes e mesmo desafinadas. Clarinetes, sobretudo o segundo mas também o primeiro, em baixo de forma, o que aliás se notou no resto do concerto de Brahms. Flauta anémica, com sonoridade escolar. Vibrato demasiadamente marcado no violoncelo, o que para mim é excessivo e irritante. Outro aspecto foi a ausência de um número apropriado de violoncelos, sete apenas, um número demasiadamente pequeno para emprestar pathos, tensão, vibração interior e sonoridade espessa e densa aos graves da orquestra. Notou-se essa mesma falta de vibração e tensão em toda a obra de Brahms. Este compositor é de abordagem complexa em termos sonoros e na coesão orquestral, os pizzicatos foram também irregulares e desacertados, a visão de Foster (e do seu bibe preto) não nos pareceu apropriada à idiomática do compositor. Demasiado directa e pouco subtil, pouco dramática.
Um belo allegretto grazioso, mais allegro do que allegretto, terminou um dos concerto mais importantes, e belos, da literatura concertante de todos os tempos. Nelson Freire aqui conseguiu redimir de forma convincente o relativo apagamento do primeiro andamento. A orquestra tocou como vestiu, rústica e trapalhona, uma nota elevada para Nelson Freire, uma nota muito mediana para a orquestra.
Os extras foram Gluck, da ópera Orfeo ed Euridice, uma transcrição... E uma obra de Heitor Villa-Lobos (obrigado a quem nos confirmou esta teoria). Excelente em Gluck, com um toque muito poético, não tão bem em Villa-Lobos com algumas notas ao lado.
P.S.: Os funcionários da segurança continuam a não se mostrar, também eles, dignos da casa e da tradição da Gulbenkian. Um senhor com ar pesadão e fato escuro, de intercomunicador afivelado sobre a orelha, conspícuo como o botão que falta na estátua do D. Pedro V em Castelo de Vide, no final do concerto lá estava encostado ao palco, "vigilante". Casaco desabotoado e aberto, mãos nos bolsos, vasta barriga saliente por fora das calças, um pé no chão, outro encostado à madeira do palco, faltava apenas um palito nos dentes e uma casca de tremoço a ser cuspida para o chão.
Os outros cavalheiros da segurança continuam com fardas obscenamente gritantes numa casa com as tradições da Gulbenkian. Será a lei que impõe que os gorilas que patrulham os perigosos intervalos dos concertos sejam obrigados a ter estas fardas?
Impõem-se umas lições de boas maneiras e boa conduta a estes senhores, de certo modo castiços...
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