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9.1.05

O mistério dos múltiplos solistas 


Sábado, esta tarde no CCB, Marko Letonja dirigiu uma formação de câmara da sinfónica portuguesa.
Na primeira parte a suite do Burguês Gentilhomem, Der Bürger als Edelmann de Richard Strauss, na segunda parte a suite Pulcinella de Igor Stravinsky.
Três solistas cantores, uma soprano Debora Boronesi, um tenor Luigi Petroni e um barítono Luca Salsi.
Para o Burguês tivemos uma orquestra a caminho de uma formação de câmara, 35 músicos: 16 cordas, 12 sopros, harpa, piano e 5 percussionistas.
Uma direcção segura de Letonja e o que me pareceu um trabalho muito consistente, contribuiram para uma fruição muito agradável da obra de Strauss. Cordas untuosas, sopros com pantufas nos poucos metais e de uma grande suavidade nas madeiras. Ritmo, energia. Um piano bem integrado no conjunto (com ligeiras imperfeições rítmicas) mostraram um conjunto orquestral com muito potencial.
O solo do violino, feito por Devries, é uma peça de resistência do repertório. O solista entrou com a orquestra e sentou-se no local apropriado junto com os seus colegas. Mas cometeu um erro, no meu entender, o ter considerado esta suite como uma espécie de concerto para violino e orquestra de Strauss. Poderia ter explorado mais a ligação da sua linha com os instrumentos com que dialoga, como o violoncelo e diversos sopros. Pelo contrário procurou um total protagonismo e desligou-se do conjunto. Claro que não se deve esquecer o papel essencial deste solo célebre dentro desta obra de Strauss, mas mesmo num concerto para instrumento solista o músico não se deve desligar totalmente do conjunto. Tecnicamente esteve bem, o que se saúda, embora por vezes tenha andado num ritmo diferente do resto do conjunto.
A interpretação de Letonja poderia ser menos recortada e mais global, mas acabou por ter a subtileza q.b. para as notas de Strauss, sendo ao mesmo tempo elegante e refinada.
A surpresa negativa ocorreu na segunda parte. A suite Pulcinella de Stravinsky é uma obra eterna por conjugar o génio absoluto do maior compositor russo e a beleza serena e, de certo modo, trágica de Pergolesi. A palavra trágica tem aqui um significado psicológico, anacrónico, e de certo modo inapropriado, o elemento trágico não está propriamente nas notas de Pergolesi, ou de outro qualquer compositor do século XVIII, vistas à luz do seu tempo, mas no pouco que, à luz dos nossos olhos, sabemos deste homem falecido muito jovem e vivendo enfermo desde a sua infância dolorosa. Evidentemente Stravinsky tinha o elemento trágico presente e é na combinação dos dois tempos, dois pensamentos, que está a chave de Pulcinella.
Stravinsky explora a música de Pergolesi de forma notável, reforça-a, enfatiza os significados, desde a alegria e a festa até à morte. Uma maravilhosa viagem do início do século XVIII até ao século XX, da Itália meridional até à Rússia de Chagall e dos Ballets Russes. É um pedaço de um universo luminoso e longínquo no tempo e no espaço. Lembro-me sempre de Chagall quando ouço esta obra e esqueço o Picasso que está mais directamente associado à criação da obra...
Mas vamos ao concerto: a obra é de uma dificuldade tremenda. Stravinsky explora tudo o que pode explorar. As vozes têm de ter extensões enormes, os instrumentos tocam nos agudos mais impossíveis. A trompa e o fagote, por exemplo, são severamente castigados e exigem instrumentistas excelentes. A coordenação entre os naipes, as entradas rigorosas, os ritmos exigem trabalho de ensaio muito rigoroso, a articulação dos diversos subgrupos que Stravinsky usa de forma sequencial tem de ser meticulosa e encadeada em forma de maquinismo de relógio suiço.
A OSP reagiu à exigência com muito empenho, mas o resultado não foi o melhor.
Era notória a crispação, o stress, a vontade de não errar dos músicos. O peso da responsabilidade foi notório. O resultado acabou por ser pouco fluente, cheio de pequenos erros que foram devastando a música que se quer festiva e liberta, mas como disse antes tremendamente complicada, e acabou por ser crispada e presa.
Os solistas vocais não demonstraram ser grandes cantores, um barítono sem graves, a "profundidade" que celebra no seu canto saiu roufenha e sem som, foi melhor quando subiu aos médios. O soprano foi incapaz de dar as notas graves com gravidade, apenas sussuradas e mal cantadas por insuficiência vocal manifesta. O tenor começou muito mal, incapaz de cantar bem em piano, andou a patinar todo o concerto. Sem dominar o papel, parecia estar a ler quase à primeira vista, devo dizer que esteve bem pior que os músicos da sinfónica. Acresce a isto uma voz sem grande corpo e pouco potente. Tem um timbre bonito no timbre médio/agudo mas não basta.

O primeiro trompa falhou estrondosamente nas suas intervenções, contribuiu manifestamente para a parte negativa deste concerto. Os agudos não conseguiam sair do instrumento. Nervos, stress? Há que perceber que nem todos os papéis estão ao alcance de certos intérpretes. Há que perceber, sem vergonha, que há um tempo para passar a pasta. O que é certo é que este trompista já comprometeu em muito as prestações da orquestra, relembro Rossini, e um crítico estaria a ser tendencioso se omitisse sempre esses factos. Há alturas em que o benefício da dúvida deixa de fazer sentido, por muito que custe. O primeiro fagote andou a correr um pouco e desligou em alguns pontos. O trompete esteve excelente, o trombone (um solista em cada parte???) foi também perfeito. O contrabaixo esteve bem. O solista em violino (Alexander Stuart) esteve razoável mas pareceu-me pouco incisivo e com acentuação demasiado mole e uniforme. O quinteto solista nas cordas esteve em geral bem. O principal problema foi a crispação geral e a falta de fluidez ou mesmo de consistência, que prejudicaram claramente a interpretação desta obra maior.
Mas notou-se que, independentemente dos defeitos, os músicos se esforçaram muito, não foi falta de trabalho que se notou. O problema foi a falta de hábito neste tipo de obras, a articulação do puzzle da obra, muito próxima da música de câmara, não foi perfeita. Está longe da idiomática habitual do agrupamento. Não sei se o problema são os músicos, a orquestra sinfónica portuguesa é muito jovem e precisa de sedimentar repertórios depois de maestros incapazes que se repetiram desde a década de 90, ou seja desde a refundação da orquestra.
A actual direcção programa concertos sinfónicos com maestros de alto nível e obras exigentes, creio que essa política é altamente positiva. O trabalho que hoje correu pior correrá muto melhor em apresentações subsequentes, fazer uma orquestra demora muitos anos. Letonja contribui para a elevação do nível orquestral ao contrário do maestro honorário, que faz um bom concerto por engano (1º acto da Walküre) e volta rapidamente ao estado habitual de desmotivação e decadência na ópera seguinte (Simão Boccanegra).

Recomendo mais calma, menos stress e mais prazer na música. Os músicos devem fruir do prazer de fazer música de forma descontraída. Nestas condições complexas de trabalho, sem condições para uma orquestra ensaiar, sem salas de estudo, sem apoio para compra de instrumentos de qualidade elevada, sem biblioteca, será sempre difícil atingir a perfeição. Mas ao menos que tenham felicidade na música.

O drama da qualidade de construção dos intrumentos de corda não se fez sentir muito hoje, mas continuo a preconizar uma fiscalização severa da qualidade dos instrumentos usados pelos músicos e ajudas financeiras a quem precisar de adquirir instrumentos em condições...

Os violinos estiveram afinados e coesos em geral. Os violoncelos estiveram também em belo plano, bem como os contrabaixos.

Uma nota final para os cantores que no final da Pulcinella tentaram sair pelo fundo do palco, onde não há saída! Um acto falhado, certamente por serem tão incapazes de abordar a obra, acabaram a tentar sair pela porta dos fundos!

Costumava ser o concertino titular que entrava depois dos colegas para ter umas palmas de circunstância. Hoje, para variar, foi o segundo concertino, Alexander Stuart que entrou depois dos companheiros, num acto, ou de distracção imperdoável, ou de vaidade descabida. Nem uma palma levou do público, o que foi simbólico e que lhe sirva de exemplo. Que não lhe suba à cabeça o papel de concertino e um solo de circunstância aqui e ali. O que Alexander Stuart pode aspirar é a um trabalho humilde e em cooperação com os músicos e não a vedetismos tristes que nem sequer estão de acordo com a sua forma de tocar.

Não percebo a utilização no mesmo concerto orquestral de dois concertinos, ou de dois trombones solistas. Será que os músicos da primeira estante não têm capacidade para fazer duas obras no mesmo concerto? Nunca vi isto em nenhuma orquestra do mundo.

Concerto para 12 valores numa média global. Saímos do CCB com a sensação que foi agradável, mas que poderia ter sido muito melhor.

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