20.1.05
O esgotar das fórmulas e dos conceitos
Não queria fazer este post, mas como até hoje ninguém fez críticas e reflexões ao que se tem passado, de bom e de mau, na Gulbenkian durante os meses de Novembro e Dezembro, acabo por escrever um texto sobre o assunto. Mais uma reflexão do que uma crítica pensada a régua e esquadro. São apenas ideias para debater. Como, felizmente, temos mais um blogue em que se reflecte e se pensa sobre estes assuntos, acho que é o momento de pedir à Teresa Cascudo que nos dê algum contraponto sobre o que me parece ser o beco sem saída da arte musical (e do bailado, ou mesmo da arte em geral) hoje. Um beco que terá saída, mesmo que não a vejamos. O Homem não vive sem a dança e sem a música...
Ontem estive num encontro em que Nuno Nabais discorreu sobre "o conceito", raramente foi tão estimulante ouvir um filósofo, mostrando claramente as suas dúvidas e as suas reflexões, para entender como vivemos num mundo em que o próprio conceito de conceito está em dúvida, talvez mesmo em crise, uma crise que mostra quão diferente é a visão dos pensadores das áreas hunanísticas e os pensadores das áreas científicas. Engraçado ver também o divórcio entre os membros da comunidade científica, físicos, químicos, etólogos, biólogos, médicos de um lado e matemáticos de outro. É nesta crise do conceito que radica o grande dilema da sociedade actual. O conceito de arte, de estética, de belo, estarão em crise? Dependem do artista? Do crítico? Do "eu" que sente e pensa o conceito? A arte está em crise? A ciência está em crise?
Ontem estive no Ballet Gulbenkian. Não sou especialista em ballet, nem quero que este texto seja visto como uma crítica especializada. Mas parece-me que o bailado contemporâneo também atravessa esta crise do conceito, tal como a música contemporânea.
"Quase" de Rui Lopes Graça sobre música de Pedro Paixão e de Fernando Ribeiro coreografa banalidades e repetições sobre "música" ruído em volume intolerável e doloroso, no meu conceito. Mas no conceito do autor é arte pura?
Uma tortura para o ouvinte espectador, música não música fraquíssima, deja vue, feito e repetido nos anos sessenta, martelado e agravado por 120 decibeis (se não eram 120... pareciam) de obrigar a tapar os ouvidos. Alguém disse que a capacidade de suportar o barulho é inversamente proporcional à inteligência, bem o creio. Mas as referências explicitas acabaram por escorraçar toda a poesia que se poderia encontrar nesta coreografia. Boas intenções, bons bailarinos, processos estéticos e visuais esgotados. Não é um problema de Rui Lopes Graça, é um problema da arte actual, da música e do bailado em particular. Continuo a ver arte como estética e não como dor. Será esse o novo conceito para o artista? Algo que implique com os nervos do público? De algum público? Do "público estúpido" que não consegue apreender a linguagem do artista? Neste caso prefiro ser incluído neste grupo, não vejo a arte como forma de torturar o receptor. Gilles Deleuze poderia dar-nos a resposta sob o recorte de camadas e planos retirados ao caos, recortes que acabam por nos dar o nosso entendimento do mundo... Mas não quero torturar o leitor!
Depois "A closer view" de Regina van Berkel; mais adocidado, com música mais fácil mais agradável, a parte para as senhoras e seus visons, pares dançantes. Visualmente menos agressivo, mas também esgotado e banal. Aqui creio que a crise é maior mas o efeito é mais agradável.
Finalmente e enfim "A pergunta sem resposta" de Hervé Robbe, com música dum "estudante do IRCAM" um tal Andrea Cera, que ou fez cera e se baldou às aulas do IRCAM, ou julga que pode enganar o ouvinte com umas porcarias tipo Darmstadt com uns violinos (ou suas sintetizações) pelo meio. Há quarenta anos atrás teria sido desinteressante. Hoje é uma coisa infernal, repetitiva, uma equívoco disfarçado com o nome de música. Detestável. Dançar ao som de tal chinfrineira é contra-natura. Os pares vestidos de branco realmente não deram nenhuma resposta à pergunta: "como transfigurar a arte neste início de milénio?". Eu não sei a resposta, mas não é certamente da forma autoritária e autista a que os artistas de hoje se arrogam.
Sobram os corpos e os movimentos, uma certa ideia de belo no movimento, no gesto. Sobra a técnica, excelente, falta o "affeto"...
Esta reflexão estende-se de certa forma à música contemporânea. Sauda-se o esforço tremendo da Gulbenkian em mostrar na sua programação a música contemporânea da mais alta qualidade que se faz hoje por esse mundo. Algumas coisas são realmente excelentes, tivemos Holliger como oboista, pianista, compositor e maestro. Tivemos o Psappha Ensemble. Numa mesma programação três esteias mundiais em ballet. Uma estreia mundial de uma obra portuguesa de Tomás Henriques. Mas uma mesma sensação de cansaço. Holliger já não é o oboísta que foi, sobra o saber e a inteligência, a experiência que o tempo traz. Como maestro dirige muito em cima do acontecimento, a batida é quase no instante exacto da entrada. Deu-me a impressão de estar a dirigir um CD, em que a música já se sabe que vai sair quando o gesto é feito... Mas, tirando este aspecto surpreendente, como maestro mostrou uma elegância enorme e muita qualidade.
Na música de câmara Holliger deixou-me dúvidas técnicas, como é possível que a "transcrição" (a palavra é exagerada porque é apenas um distribuir das partes do cânone da Arte da Fuga pelos instrumentos) tenha tido articulações diferentes quando era o fagote ou o clarinete baixo a tocar a mesma frase? Não existiu uniformidade no tecido temático em virtude deste aspecto, no meu entender grave e que se estendeu a todos os instrumentos. Interessante a parte com harmónica de vidro, um instrumento que não passa de uma curiosidade fria e inexpressiva do panteão dos instrumentos musicais, mas com a graça do som inusitado.
Como compositor Holliger acabou por mostrar o seu lado mais fecundo, e aqui está a prova de que a música afinal pode não estar esgotada, mesmo na sua forma de expressão mais clássica: voz e instrumentos acústicos. O génio de Holliger transpareceu sobretudo nas canções, a prosódia, mesmo que algo óbvia (o poema fala do rio e ouve-se água a correr), é o ponto forte do compositor. O poema vive com a música em franco diálogo e essa utilização tão clássica das formas acaba por ser o lado mais refrescante da "solução Holliger".
A 6 de Dezembro tivemos no Grande Auditório o Psappha Ensemble com Peter Maxwell Davies. A 7 de Dezembro foi a vez de Mark-Anthony Turnage, Harrison Birtwistle, Tomás Henriques (estreia mundial), Thomas Adès, James MacMillan. A obra de Peter Maxwell Davies é obra datada, amadorística no sentido "british^" do termo. Parece obra para um grupo amador que se reune para fazer uns espectáculos ao sábado à noite. Banal repetitiva, agressiva no mau sentido. A destruição do violino foi um acontecimento lamentável e sobretudo gratuito. Não deve ser vista no entanto como música, aliás como música é muito má, creio que o sentido estético se entende neste caso com a performance e o teatro. As canções para um rei louco são uma paródia irónica, uma peça de teatro musical, uma ópera miniatura para barítono e agrupamento de câmara. Se for vista neste sentido, apesar do lado violento e gratuito que desprezo vivamente, porque já nem sequer é chocante, é apenas parolo e triste, acaba por ter uma componente estética assinalável e pode ser vista como uma forma de arte, no meu conceito, bem entendido. O trabalho do barítono Kelvin Thomas é uma perfeição e merece ser realçado. Mesmo considerando a música cheia de citações, a puxar ao popularucho e à fácil paródia ao Messias de Handel, por exemplo. O dia em que se interpretou esta obra, atrasado mais de vinte anos, foi um repor da história nos seus eixos acabando por prestigiar a Fundação Gulbenkian. Quem afinal conhecia Maxwell Davies? Uma meia dúzia de entendidos. Ficámos mais ricos, ou pobres, com esta programação.
Sobre Tomás Henriques, penso que a nova obra para cordas e piano sofre dos vícios de formação dos compositores actuais em Portugal. É uma obra intelectual, muito pensada e maturada, Acaba por ser a exploração exaustiva do mesmo material temático, por dez longos minutos. O compositor fala de contraste, surpresa, inesperado. O ouvinte não sente emocionalmente esses jogos. Uma obra tecnicamente elaborada, mas pouco motivante em termos auditivos. Falta emoção e energia, falta ritmo, falta material. Mas continuo a dizer que esta é apenas uma opinião pessoal que gostaria de debater...
Ficam estas ideias, esparsas e contraditórias, para lançar debate, ou mesmo para se poder pensar um pouco no assunto. O que é afinal o conceito? Algo subjectivo? O que é crítica? Será o utilizar de conceitos implícitos, raramente enunciados, para postular crenças e analisar o real face aos enunciados prévios, muitas vezes apenas do domínio do próprio crítico? Não sei.
Ontem estive num encontro em que Nuno Nabais discorreu sobre "o conceito", raramente foi tão estimulante ouvir um filósofo, mostrando claramente as suas dúvidas e as suas reflexões, para entender como vivemos num mundo em que o próprio conceito de conceito está em dúvida, talvez mesmo em crise, uma crise que mostra quão diferente é a visão dos pensadores das áreas hunanísticas e os pensadores das áreas científicas. Engraçado ver também o divórcio entre os membros da comunidade científica, físicos, químicos, etólogos, biólogos, médicos de um lado e matemáticos de outro. É nesta crise do conceito que radica o grande dilema da sociedade actual. O conceito de arte, de estética, de belo, estarão em crise? Dependem do artista? Do crítico? Do "eu" que sente e pensa o conceito? A arte está em crise? A ciência está em crise?
Ontem estive no Ballet Gulbenkian. Não sou especialista em ballet, nem quero que este texto seja visto como uma crítica especializada. Mas parece-me que o bailado contemporâneo também atravessa esta crise do conceito, tal como a música contemporânea.
"Quase" de Rui Lopes Graça sobre música de Pedro Paixão e de Fernando Ribeiro coreografa banalidades e repetições sobre "música" ruído em volume intolerável e doloroso, no meu conceito. Mas no conceito do autor é arte pura?
Uma tortura para o ouvinte espectador, música não música fraquíssima, deja vue, feito e repetido nos anos sessenta, martelado e agravado por 120 decibeis (se não eram 120... pareciam) de obrigar a tapar os ouvidos. Alguém disse que a capacidade de suportar o barulho é inversamente proporcional à inteligência, bem o creio. Mas as referências explicitas acabaram por escorraçar toda a poesia que se poderia encontrar nesta coreografia. Boas intenções, bons bailarinos, processos estéticos e visuais esgotados. Não é um problema de Rui Lopes Graça, é um problema da arte actual, da música e do bailado em particular. Continuo a ver arte como estética e não como dor. Será esse o novo conceito para o artista? Algo que implique com os nervos do público? De algum público? Do "público estúpido" que não consegue apreender a linguagem do artista? Neste caso prefiro ser incluído neste grupo, não vejo a arte como forma de torturar o receptor. Gilles Deleuze poderia dar-nos a resposta sob o recorte de camadas e planos retirados ao caos, recortes que acabam por nos dar o nosso entendimento do mundo... Mas não quero torturar o leitor!
Depois "A closer view" de Regina van Berkel; mais adocidado, com música mais fácil mais agradável, a parte para as senhoras e seus visons, pares dançantes. Visualmente menos agressivo, mas também esgotado e banal. Aqui creio que a crise é maior mas o efeito é mais agradável.
Finalmente e enfim "A pergunta sem resposta" de Hervé Robbe, com música dum "estudante do IRCAM" um tal Andrea Cera, que ou fez cera e se baldou às aulas do IRCAM, ou julga que pode enganar o ouvinte com umas porcarias tipo Darmstadt com uns violinos (ou suas sintetizações) pelo meio. Há quarenta anos atrás teria sido desinteressante. Hoje é uma coisa infernal, repetitiva, uma equívoco disfarçado com o nome de música. Detestável. Dançar ao som de tal chinfrineira é contra-natura. Os pares vestidos de branco realmente não deram nenhuma resposta à pergunta: "como transfigurar a arte neste início de milénio?". Eu não sei a resposta, mas não é certamente da forma autoritária e autista a que os artistas de hoje se arrogam.
Sobram os corpos e os movimentos, uma certa ideia de belo no movimento, no gesto. Sobra a técnica, excelente, falta o "affeto"...
Esta reflexão estende-se de certa forma à música contemporânea. Sauda-se o esforço tremendo da Gulbenkian em mostrar na sua programação a música contemporânea da mais alta qualidade que se faz hoje por esse mundo. Algumas coisas são realmente excelentes, tivemos Holliger como oboista, pianista, compositor e maestro. Tivemos o Psappha Ensemble. Numa mesma programação três esteias mundiais em ballet. Uma estreia mundial de uma obra portuguesa de Tomás Henriques. Mas uma mesma sensação de cansaço. Holliger já não é o oboísta que foi, sobra o saber e a inteligência, a experiência que o tempo traz. Como maestro dirige muito em cima do acontecimento, a batida é quase no instante exacto da entrada. Deu-me a impressão de estar a dirigir um CD, em que a música já se sabe que vai sair quando o gesto é feito... Mas, tirando este aspecto surpreendente, como maestro mostrou uma elegância enorme e muita qualidade.
Na música de câmara Holliger deixou-me dúvidas técnicas, como é possível que a "transcrição" (a palavra é exagerada porque é apenas um distribuir das partes do cânone da Arte da Fuga pelos instrumentos) tenha tido articulações diferentes quando era o fagote ou o clarinete baixo a tocar a mesma frase? Não existiu uniformidade no tecido temático em virtude deste aspecto, no meu entender grave e que se estendeu a todos os instrumentos. Interessante a parte com harmónica de vidro, um instrumento que não passa de uma curiosidade fria e inexpressiva do panteão dos instrumentos musicais, mas com a graça do som inusitado.
Como compositor Holliger acabou por mostrar o seu lado mais fecundo, e aqui está a prova de que a música afinal pode não estar esgotada, mesmo na sua forma de expressão mais clássica: voz e instrumentos acústicos. O génio de Holliger transpareceu sobretudo nas canções, a prosódia, mesmo que algo óbvia (o poema fala do rio e ouve-se água a correr), é o ponto forte do compositor. O poema vive com a música em franco diálogo e essa utilização tão clássica das formas acaba por ser o lado mais refrescante da "solução Holliger".
A 6 de Dezembro tivemos no Grande Auditório o Psappha Ensemble com Peter Maxwell Davies. A 7 de Dezembro foi a vez de Mark-Anthony Turnage, Harrison Birtwistle, Tomás Henriques (estreia mundial), Thomas Adès, James MacMillan. A obra de Peter Maxwell Davies é obra datada, amadorística no sentido "british^" do termo. Parece obra para um grupo amador que se reune para fazer uns espectáculos ao sábado à noite. Banal repetitiva, agressiva no mau sentido. A destruição do violino foi um acontecimento lamentável e sobretudo gratuito. Não deve ser vista no entanto como música, aliás como música é muito má, creio que o sentido estético se entende neste caso com a performance e o teatro. As canções para um rei louco são uma paródia irónica, uma peça de teatro musical, uma ópera miniatura para barítono e agrupamento de câmara. Se for vista neste sentido, apesar do lado violento e gratuito que desprezo vivamente, porque já nem sequer é chocante, é apenas parolo e triste, acaba por ter uma componente estética assinalável e pode ser vista como uma forma de arte, no meu conceito, bem entendido. O trabalho do barítono Kelvin Thomas é uma perfeição e merece ser realçado. Mesmo considerando a música cheia de citações, a puxar ao popularucho e à fácil paródia ao Messias de Handel, por exemplo. O dia em que se interpretou esta obra, atrasado mais de vinte anos, foi um repor da história nos seus eixos acabando por prestigiar a Fundação Gulbenkian. Quem afinal conhecia Maxwell Davies? Uma meia dúzia de entendidos. Ficámos mais ricos, ou pobres, com esta programação.
Sobre Tomás Henriques, penso que a nova obra para cordas e piano sofre dos vícios de formação dos compositores actuais em Portugal. É uma obra intelectual, muito pensada e maturada, Acaba por ser a exploração exaustiva do mesmo material temático, por dez longos minutos. O compositor fala de contraste, surpresa, inesperado. O ouvinte não sente emocionalmente esses jogos. Uma obra tecnicamente elaborada, mas pouco motivante em termos auditivos. Falta emoção e energia, falta ritmo, falta material. Mas continuo a dizer que esta é apenas uma opinião pessoal que gostaria de debater...
Ficam estas ideias, esparsas e contraditórias, para lançar debate, ou mesmo para se poder pensar um pouco no assunto. O que é afinal o conceito? Algo subjectivo? O que é crítica? Será o utilizar de conceitos implícitos, raramente enunciados, para postular crenças e analisar o real face aos enunciados prévios, muitas vezes apenas do domínio do próprio crítico? Não sei.
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