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31.1.05

Medeia 

Depois de uma semana tremenda, com o quarteto Borodin em dois dias seguidos e com Pollini na Gulbenkian tenho hoje a Medeia de Cherubini. Esta deslocação e recepção tem a vantagem de ter algumas cartas na mão, as críticas já saíram. M.P. aqui mesmo deixou reservas à realização da orquestra e a Annamaria dell'Oste. Teresa Cascudo não deixou grandes reservas e A. M. Seabra só mostrou reservas.

Estranho apenas alguns factos: a referência obsessiva a Maria Callas, que cantou, no seu tempo e ao seu modo a ópera. O "Fantasma da Callas", e mais conversa trivial em clichés repetidos, é do mais anacrónico e disparatado, diria mesmo irritante, que tenho escutado e lido sobre o assunto. Callas cantou e gravou em italiano uma ópera escrita originalmente em francês e num estilo totalmente desajustado do contexto da obra. Só existe como fantasma para quem se encarna nas mesmas raízes ultrapassadas do voeyrismo operático e da leitura da ópera, não como exercício cultural e intelectual, mas como espectáculo de raiz popular de malabarismo circense. Uma visão de "brava e bis" a todas as notas em fortíssimo acima do sol. Leio no "O Público" de hoje que Seabra acha a encenação fraca, o autor da crítica perde-se em malabarismos de escrita mas não consegue explicar em concreto a fundação exacta da sua opinião: onde está o exemplo, onde está a demonstração real dos pontos fracos da realização de Cintra? Perdem-se, ou nunca existiram, no arrazoado sobre as suas produções anteriores. Consegue dizer, unicamente, que aquilo é "chatice museológica". É pouco quando se arrasa uma encenação. É mesmo intelectualmente desonesto quando se dispõe de uma coluna num jornal de ampla divulgação onde se gastam toneladas de tinta sem se explicar as reais motivações de se opinar que aquilo é "uma chatice museológica". De facto até poderá ser uma maçada museológica, mas se é assim deve-se explicar o porquê e não enunciar uma opinião.

Assim não se está a fazer crítica, está-se a dizer que se conhece bem o Cintra e que o autor do texto é uma espécie de dinossauro do audiovisual (repare-se que não digo da crítica musical), que conversou com o encenador antes e até o entrevistou! Pasme-se, o Seabra entrevistou o Luís Miguel Cintra há muitos anos! Vejam como "eu sou uma espécie de patrão dogmático, uma espécie de pater criticus..." ou ainda "ando nisto há muito tempo" só falta dizer: "sou o sargento lateiro da crítica". E o texto espremido? "Uma chatice museológica". A quem tem como referência o fantasma da Callas, e o uso da palavra "perplexidade", não consigo levar a sério...

Outra perplexidade, esta minha, é a quase total ausência na crítica pública, ao facto de a ópera ter sido escrita em francês e ser apresentada em italiano. Perde-se uma oportunidade histórica de poder escutar a raiz, acabamos assim por ter de ouvir um sucedâneo marcado por todos os defeitos de uma tradução para italiano feita numa época em que o primitivismo do público pequeno burguês era ainda mais básico, porque tacanho, do que a ignorância esclarecida da aristocracia do ancien régime ou da ignorância sedenta de luz dos citoyens (também eles burgueses) do final de setecentos, em França.

Finalmente a referência que tenho, a única Medeia no meio disto tudo que é uma obra prima absoluta: a Médée de Marc Antoine Charpentier e Corneille (Thomas). Obra do final do século XVII é o marcar do apogeu da ópera barroca em tudo o que tem de supremo, texto, teatro e música, tragédia e mito. Com respeito por algumas convenções, é certo, mas surpreendente pela modernidade que a tragédia encerra, intemporal porque vive nas raízes mais profundas do homem. O teatro trágico como visão e representação dionisíaca da vida, como Nietsche tão bem escreveu na Origem da Tragédia, pináculo do seu raciocínio académico.

On vera...


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