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15.1.05

Bach e Lugares Comuns 

No Mil Folhas de hoje A. Seabra vem falar do que manifestamente desconhece. Falo dos discos com cantatas de Bach. Comenta genericamente Bach ter capacidade para fazer uma obra genial por semana, que maravilha! É verdade, mas não explica em que contexto e como, não explica que isso ocorreu apenas durante um período muito breve da sua vida. Se Bach, em Leipzig, tivesse feito uma cantata por semana teria composto cerca de 1600 cantatas! É certo que houve compositores que atingiram números desta grandeza, Graupner (1418 conhecidas hoje) e Telemann (1518 conhecidas hoje), mas não Bach que a partir de 1730 diminuiu praticamente para zero a composição destas obras. Bach terá composto, com muitas dúvidas, um número nunca superior a 295 cantatas das quais se conhecem 194. Algumas das que figuram no seu catálogo são de outros compositores, como a 53 e 189 de Melchior Hoffmann, a 142 de Kuhnau (seu antecessor em Leipzig), 141 e 160 de Telemann e a 15 de Johann Ludwig Bach, o primo de Bach. Como Bach teve de providenciar música para cerca de 1500 serviços religiosos em Leipzig (Segundo Gerhard Herz) usou material anterior a Leipzig pois tinha composto 30 cantatas até à idade (38 anos) com que iniciou a sua actividade na Igreja de S. Tomé (St. Thomas). Quando estava com dificuldades criativas Bach usava material anterior e de outros compositores, como provam as cópias que fez de seus colegas. O material do período do Cöthen, inúmeras obras instrumentais, muitas perdidas, também serviu como fonte musical reciclada pelo compositor. O ciclo de cantatas era de 59 por ano, ou seja mais de uma por semana, pois era necessário produzir para certas festividades que não coincidem com domingos. As autoridades nunca deram a Bach condições de trabalho dignas, depois de 1730 Bach deixa de fazer cantatas, o seu vencimento também virá a ser reduzido. Uma das razões para esta diminuição é o "desleixo" de Bach, e também o seu sistema de ensino que era, segundo algumas más línguas, demasiado impaciente para com os medíocres e os preguiçosos. Esta observação última é também um lugar comum, porque estudantes de Bach realçam sempre a sua enorme capacidade de fazer o aluno pensar e trabalhar por si próprio, dando exemplos ao cravo de ideias musicais e de desenvolvimentos. Mas aqui estamos num mundo mais avançado e não junto dos rapazes ranhosos e preguiçosos que Bach parecia detestar.
Sem relativizar e sem explicar, um jornalista como Seabra que gosta de se fazer passar por erudito, colabora não para uma pedagogia ilustrativa do sentido real da obra de Bach, mas para um lugar comum: "Bach era um génio, uma espécie de super homem, um demiúrgo incansável".
O que é realmente importante é a qualidade da obra, e neste ponto ficamos a saber que é genial, e logo através de Seabra! Mas porquê? É a harmonia? A melodia? É a prosódia? O encadeamento dos textos? A utilização do modelo de Neumeister? O uso dos recitativos/ária? A cantata coral? A cantata em diálogo? Não sabemos, sabemos, no meio dos rios de tinta que Seabra dispõe no jornal "O Público", como se não custasse dinheiro ao Belmiro de Azevedo, que Bach escrevia uma cantata por semana e era genial!
Sobre o Christophe Coin encontra-se um grosseiro erro. Quem gosta mesmo de Bach e das extraordinárias interpretrações de Coin conhece as suas TRÊS gravações. Quando vi o primeiro disco da Astrée não descansei e procurei imediatamente o segundo, um pouco mais tarde quando saiu o terceiro comprei-o avidamente, foi natural. Mas segundo Seabra:

"(atente-se, porém, que foram dois os discos deste projecto de Coin)" sic

É fantástico o uso do termo "projecto" aqui, Seabra tudo sabe, sabe até que o "Projecto" Coin era só de dois discos. O grande e iluminado Seabra até deve ter falado com Coin, inteirou-se da dimensão menor deste "Projecto" de dois discos. Ou então deve ter lido vários relatórios sobre o assunto em diversos e ilustres magazines e percebeu que o projecto era só para dois discos, bravo Seabra, um verdadeiro trabalho de investigação.

Não percebo como o grande Seabra não tem na sua colecção maravilhosa de CDs os TRÊS discos. Gravados em 1993, 1994 e em 1995. Sempre na Turíngia onde Bach nasceu. Como se pode discursar sobre a excelência dos cantores, o naipe dos solistas, e rebéubéubéu, "do melhor que há", sem saber que existe um terceiro disco?

O primeiro tem as cantatas 180, 59 e 115, gravação de Novembro de 1993. O segundo foi gravado em Maio de 95 e tem as cantatas 85, 183, 199 e 175. O terceiro foi gravado em Outubro de 1995 e tem as cantatas 41, 6 e 68. Gravações feitas sempre na igreja de Ponitz. Os solistas são sempre os mesmos: Christophe Coin no Violoncelo Picolo, Barbara Schlick, Andreas Scholl, Christophe Pregardien e Gothold Schwarz. Vá lá tentar comprar o terceiro disco, mestre Seabra, não fique mais uns anos na escuridão de tão grande interpretação. De facto é mesmo uma grande interpretação, aqui estamos de acordo.
Sobre o uso da retórica e do verbo não posso estar em maior desacordo, um dos sentidos últimos do discurso de Coin, e dos seus solistas é precisamente a retórica e eloquência da frase na sua articulação com o texto poético, banal deve dizer-se, a prosódia e a dicção de todos os solistas, com destaque para o alto e o tenor, Coin realça o lado instrumental e o discurso escondido nas partes não cantadas, um dos pontos fortes da retórica de Coin é esse mesmo, Bach escreveu as linhas complexas que escreveu, e não apenas esquemáticos acompanhamentos no baixo, com intenção discursiva, essa é uma das forças do discurso de Bach e que difere do discurso mais simples de Telemann, que no entanto também atinge pontos altos na Paixão Seg. S. Mateus de 1750 ou em muitas das suas cantatas, (ouvir a propósito as gravações de Junghänel e dos Cantus Cölln de cantatas de Telemann). Herreweghe é mais depurado, o som pelo som é mais belo (opinião pessoal subjectiva), mas isso não significa uma retórica mais elaborada.
Sobre o uso de uma voz por parte Seabra nada explica, nem porque razão acha minimal o Rifkin. Parece que tem medo da polémica, ou de explicar mesmo o que significa. Perde mais uma ocasião de fazer pedagogia e de explicar o problema a um leitor mais curioso e atento. Prefere dizer que se deve ir ao Picoas Plaza comprar os disquinhos, (e comprar na net? e noutra lojeca?). Voltando ao tema: é claro que discutir o assunto exige conhecimentos, e quando chega ao momento da verdade Seabra, que gasta toneladas de tinta por ano ao Belmiro, esquece-se de explicar as diferentes concepções, os diferentes pensamentos.
Depois acha que cantar apenas com vozes masculinas é um "prurido historicista", como se não se percebesse imediatamente o significado e a qualidade sonora da escrita de Bach para os meninos de coro. O problema é que, hoje, não há coros de crianças com qualidade e número suficiente para se fazerem gravações de qualidade. Os meninos já não estão em colégios internos a cantar quatro a seis horas por dia, não levam açoites quando desafinam ou cantam mal, felizmente para os meninos infelizmente para certos cantores e cantoras que por aí se passeiam! Não se podem fazer gravações de integrais com meninos nos coros, é quase impraticável. Musicalmente, e aí está o ponto, resulta muito mais belo com meninos. Bach escreveu para meninos e não para o Scholl. Também não se toca a Tetralogia de Wagner usando um conjunto de saxofones, marimbas e sintetizadores, mesmo que estes sejam tocados por instrumentistas de eleição! Musicalmente não foi essa concepção do compositor, também com a voz se passa o mesmo. Uma matrona gorda projectando a voz numa sala imensa não é o mesmo que um rapaz de dez anos emitindo uma onda quase sinusoidal. Mas explicar isto a esta gente que anda sempre a chamar à colação a Flemming e as outras divas de trazer por casa é difícil, gostar de música, na minha cooncepção, não significa andar sempre atrás das saias das cantoras aos gritinhos e a dizer brava, brava no final do concerto, uns gritando como raparigas histéricas outros como bodes lascivos. A música está para além desse folclore, felizmente.
A música é precisamente o que Bach deixou nas suas partituras, como o pensou e como o realizou. A música é bela, deve ser encarada de forma séria, mas também com prazer dos sentidos e do espírito.


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