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30.12.04

Uma espécie de telenovela 

Era uma vez um corsário muito gordo e constipado, parece que era plebeu, embora os corsários fossem, em geral, uns fulanos fidalgos que armavam navios a suas expensas para piratear os inimigos da nação. Esse corsário derrotou os seus confrades, os corsários africanos, os chamados mouros. A situação passa-se no século XIV.
Este corsário tinha seduzido uma moça (se fosse viva seria soprano), que era filha de um homem nobre e muito poderoso (um tipo de voz grave e poderosa, mas desafinando nos agudos no prólogo), que tinha um palácio inacessível a todos, este corsário muito gordo (mesmo rouco mostrou um boa voz), no intervalo das suas piratarias, tinha tido tempo para enganar a moça e obter um rebento. À revelia do putativo sogro. Uma vigorosa moçoila (será um soprano no acto seguinte) nasceu. Não se sabe bem onde, mas nasceu, provavelmente fora do alcance do sogro, que passa a vida a suspirar pela neta "que nasceu e tal" e não sabe dela. De repente a filha (em depressão pós parto) recolheu a casa do pai. De modo que o corsário gordo que a tinha seduzido tinha deixado de a poder ver, e lamentava-se por isso cantando com boa voz e compondo bem o personagem, embora muito gordo e rouco e constipado.
O corsário alto e gordo tinha entretanto deixado a bébé numa região inóspita e longínqua, bárbara mesmo, que se vem descobrir no decorrer da acção ser Pisa (!!!), também não se sabe porquê.
Estava aos cuidados de um velha muito bondosa que morreu (seria mezzo se fosse viva). O corsário perdeu por isso a filha que andou muito triste a vaguear pelas pradarias, ou seriam ruas, durante três dias, à míngua e cheia de fome, a desgraçadinha. Entretanto a mãe morre e o putativo sogro diz ao malandro do corsário: só te perdoo se me trouxeres a minha neta, para que eu a possa ver! O corsário, muito aflito diz: "é pá perdi a rapariga, eu bem que a tinha deixado numa região longínqua e inóspita (Pisa) mas a cabra da velha que tomava conta dela morreu". Até aqui todos são baixos ou barítonos.
Durante a calada da noite dá-se a eleição do soberano da cidade! O grande apaniguado do corsário, um tipo com voz aveludada mas pouca potência sonora e agudos fracotes influenciou a plebe que votou em massa, de madrugada, no corsário gordo, que passou a ser o Doge, (parecido com duce ou dux ou duque), da cidade, Génova. A coisa ainda é pior que a Ucrânia, cheira mesmo a fraude eleitoral. Uma espécie de Doge, corsário, gordo, plebeu, perde filhas em regiões inóspitas, engana raparigas filhas dos nobres, mata os pobres dos pretos africanos, combate os pisanos e os guelfos, vive rodeado de aldrabões capazes de fazerem golpaças eleitorais durante a noite. Enfim, um fulano pouco recomendável e muito gordo. Para cúmulo manda desterrar os inimigos e o putativo sogro tem de fugir, não se sabe se desterrado, se foragido, mas vive algures com um nome falso!
E continua... no segundo acto que é o primeiro, uma vez que o primeiro foi chamado de prólogo, temos a filha, e o tenorzeco, que corteja a filha do gordo, mas ninguém sabe que é a filha, embora ela saiba, ou não, como se virá a perceber. O putativo sogro vive também neste palácio, com o dono da casa, um Grimaldi que nunca aparece, devia ser avô do actual príncipe do Mónaco, o que dá um ar social, todos são inimigos do Doge. Ou seja vivem todos juntos! E deve ser perto de Pisa, região bárbara relembre-se, inimiga de Génova, onde o Doge vem a passar por acaso! Ou será perto de Génova? Duas boas hipóteses, uma vez que a rapariga foi encontrada perto, e a cidade fica não longe de Génova. Adiante que naquela região de Itália é tudo perto, mesmo que longínquo e selvagem, e com o comboio ainda ficou mais perto.
Uma ária e a rapariga, uma soprano lírica verdiana pura, com um timbre metálico muito bom e corpo vocal razoável, ou seja: muito bem dotada de harmónicos, começa de forma algo titubeante, desafinando mesmo um pouco, mas encontra-se, levanta a cabeça e vai à luta, continua a ópera de vento em popa, na medida em que a ópera o permite e acaba em beleza. O tenorzeco entra e declara-se, parece que temos amor...
Eis que entra o Doge gordo, neste palácio fora da cidade, mais o lugar tenente, o tal das fraudes eleitorais. Dá-se o "ponto de encontro" pai e filha ficam a sós! E descobrem que são pai e filha, por uma medalha, um nome comum lembrado, e já está! A rapariga seria destinada ao cortesão amigo do Doge e este queria pedi-la em casamento.
Aqui a situação é de ponto de encontro, lá vem o Doge de passagem, e depois de vinte e cinco anos dão um grande abraço e o saudoso Henrique Mendes dá-lhes a benção.
O Paolo, assim se chamava o fraudulento eleitoral, que cobiça a filha do Doge reclama-a ao pai dela, que não divulgou que tinha reconhecido e descoberto a filha, nem esta o fez. O pai nega-a agora ao Paolo, desdizendo-se. Este fica furioso e jura vingança! Todos preparam conspirações.
E a coisa continua, há um conselho, uma confusão enorme em que todos gritam, dá-se uma revolta, entra tudo a jogar à espada na sala do conselho!!! Entra a guarda republicana e o Doge dá voz de prisão a todos, aqui uma cena à Pai Tirano com o Gordo a fazer de polícia em vez de Vasco Santana. Entretanto a desgraçadinha da enjeitadinha foi raptada, mas conseguiu fugir das masmorras iraquianas, o tenorzeco, que aparece em tudo que é lugar, acusa, com uma boa voz luminosa e encorpada, melhor aliás do que na ópera anterior, o pai, que ele não sabe que é pai, da sua amada de ter preparado tudo para seduzir a filha, o gordo jura que não, que não, pelos santinhos, não fui eu, lá lá lá. O malandro do fraudulento eleitoral fica pálido e jura também que não e roga uma praga a si próprio. A sala do conselho, agora uma espécie de circo onde entra toda a gente, revoltosos, apoiantes do gordo, conselheiros, putativo sogro, tenorzeco, populaça, guarda republicana, enjeitadinha, etc, etc, etc, e todos cantam, lá lá lá. O coro está melhor em geral, mas esta cena foi um desastre, sobretudo na sua primeira aparição. Tudo uma terrível confusão e o coro contribuiu também. Em tudo o resto está muito superior, e as raparigas do coro cantam melhor a olhos vistos. O director de coro, Andreoli, é mesmo bom.
A confusão continua, toda a gente entra no palácio, estão presos nas masmorras e passeiam-se pela sala privada do Doge! O Paolo vai ser condenado por traição mas continua a ter acesso à Câmara reservada do Doge. Outros são inimigos confessos do gordo, mas andam de espada à cinta pelos reservados, entram e vão-se embora, cantam umas coisas e retiram-se, e voltam e retiram-se. O malandro do raptor iraquiano, o amigo do Doge, que tem pouca força mas voz aveludada, mas compõe bem o papel, naquilo que é possível nesta confusão, deita veneno num vaso que o Doge usa para beber, Ucrânia ao seu melhor estilo, espera-se um final trágico! Aparece o gordo e bebe pelo copo, uma vez que tem sede, a água sabe-lhe mal, pudera, com tanta dioxina, mas se bebesse água da EPAL todos os dias não estranhava.
O futuro genro (alguém duvida), o tenorzeco, aparece e vai para matar o futuro sogro com a faca que o Paolo lhe deu, aparece a enjeitadinha e diz que não, que não, que o senhor gordo está a dormir, e nunca fez sexo com ele, que o amor que os une é mais elevado e lá lá lá...
O gordo acorda do sono induzido pelo veneno, a trama resolve-se e todos se abraçam e o sogro promete perdão ao tenorzeco se este o ajudar. Todos ficam felizes, mesmo o envenenado que já sente os sintomas da morte que se seguirá, lá lá, lá.
Entretanto Paolo é condenado à morte e vai para o cadafalso, O Doge perdoou a todos menos ao ourives reformado (parece que antes andava de jerico a vender sifões, digo, medalhas e fios de ouro à comissão e a crédito) e agora é cortesão, um homem do aparelho político, que envenenou o próprio patrão (onde já vi isto?). No caminho do patíbulo revela ao maior inimigo do Doge, o tal senhor pomposo que é avô da menina enjeitadinha, que ele, Paolo, está vingado: "envenenei o gordo". O senhor indignado diz que o mata já ali à cutilada, mas depois arrepende-se, "não te vou dar esse prazer: malandro, estás reservado ao carrasco, lá lá lá"...
Entretanto o putativo sogro reaparece, muito convincente do ponto de vista teatral e vocal, excelente neste ponto, diríamos, espada à cinta, tudo dentro do palácio, e ameaça o Doge de morte, este abraça-o, "perdoa-me", e diz-lhe que a filha não está morta, a netinha do putativo sogro está viva, viveu até com ele o tempo todo na casa do tal senhor que era amigo dele, chamou-lhe Amélia, que grande Amélia isto me saiu, mas o seu nome é "Simplesmente Maria". Alegria! Alegria! Aparecem todos, todos cantam e louvam o bom coração do gordo que morre caindo calmamente no chão, não sem antes elogiar o genro e abençoar o casamento deste com a sua filha enjeitadinha e o nomear seu sucessor no cargo (??) de Doge. Mas algo não estará errado aqui? Isto no princípio era uma democracia, um Doge plebeu e comunista, no final temos o genro nomeado como herdeiro? Mas afinal estamos na Coreia do Norte ou quê? Todos celebram felizes junto ao corpo morto do jovem gordo que até cantou muito bem.
E fim.

Ah! O gordo era o Simone Boccanegra (Simão Bocanegra), um Doge de Génova do século XIV. Morreu envenenado e tinha um irmão. É a única coisa que se sabe do homem. Sabe-se também que quem inventou esta espécie de porcaria teatral sem nexo nenhum se chamava Francesco Maria Piave. Sabe-se que Verdi detestava o libreto mas o Ricordi, o das edições, o obrigou a rever o texto e Verdi solicitou a Boito, de quem desconfiava a princípio, a fazer esta revisão, Boito não gostou da tarefa, pois achava o texto original um nojo, mas tentou... A cena do conselho deve-se a Boito. A avaliar pelo desempenho dir-se-ia que o Otelo estava ainda muito longe.

A orquestra esteve bem. Os metais foram um pouco rústicos e brutais no dia da estreia. As cordas estiveram bem excepto os primeiros violinos, desligados e desafinados nas passagens mais a descoberto. As violas estiveram muito bem, depois do meio fiasco deste naipe na Valquíria e nos muitos pontos em que surgem em papel de destaque nesta "ópera". Madeiras perfeitas, clarinete baixo de parabéns, clarinete, oboé, flautas, fagotes em belo plano.

Soltan Péskó esteve fraco, este maestro oscila entre o bom do último Wagner no CCB e o péssimo do Wagner de Tristan o ano passado. Neste caso foi pouco denso, dramaticamente foi pouco conseguido, embora o libreto seja trágico e cómico ao mesmo tempo, a música de Verdi é bastante razoável e esse realce não se fez sentir, entradas em falso por todos os lados, umas vezes levantava o braço para dar uma entrada dois compassos antes, outras vezes atacava em cima, outras esquecia-se. Dava a impressão que queria desconcentrar a orquestra e cantores em vez de pilotar o barco! Felizmente a orquestra mantinha-se no seu posto e não ligava ao maestro, entrando no local exacto. Mandou calar o público de forma muito enérgica, os patetas alegres da casa continuam a tentar interromper o fluxo dramático com palmas a meio da música, nesta acção de mandar calar o público teve o seu maior sucesso, a energia com que agitava os braços a elegância do gesto foram marcantes, tem 11 valores por esta decisão enérgica que lhe subiu a nota... Não se percebe a insistência neste maestro irregular cujo cachet supera em muito grandes nomes da regência.

E no próximo post colocarei uma citação de Vianna da Motta, quando começou a fazer crítica no Diário de Notícias em 1924, sobre a ópera italiana e os públicos do S. Carlos de então... Vem a propósito e foi muito duro na época.

Direcção musical
Zoltán Peskó: média-fraca, pelo já exposto.

Encenação
Elijah Moshinsky: muito fraca, não destacou o elemento surreal que a acção e o libreto comportam, foi certinho ao ler à letra o libreto de Piave. Uma boa ideia: a dos grafitti em oposição às inscrições oficiais, o poder do povo versus o poder representativo, mas uma boa ideia não salva a encenação da banalidade).

Cenografia
Michael Yeargan: unitária, cenários que se mantém em todas as cenas, opção económica? Algo massivos no palco do S. Carlos. Muito formais e pouco plásticos, esteticamente discutíveis relativamente ao século XIV.

Figurinos
Peter J. Hall: banais e descoloridos, longe da estética representada.

Desenho de luzes
Clare O'Donoghue: houve desenho de luz?

Simon Boccanegra
Ambrogio Maestri: bom, mas rouco, fez uma composição de grande empenho. Será um grande Falstaff.

Amelia Grimaldi - Maria
Micaela Carosi: gostei, passe embora a entrada algo a frio. Mais detalhado acima.

Gabriele Adorno
Mario Malagnini: excelente e a subir de forma.

Jacopo Fiesco
Enrico Iori: entrou a desafinar nos agudos, mas realizou o papel com rigor e acabou de forma excelente, potência sonora, sensibilidade, excelentes graves.

Paolo Albiani
Johann Werner Prein: Voz de veludo, mas com claras dificuldades vocais para cantar em fortíssimo, pouco pujante, composição do amigo que se torna malandro feita de forma notável.

Pietro
Mário Redondo: Este jovem barítono português começa a merecer um papel mais sólido. Bom trabalho.

Um Capitão
Frederico Félix Antonio: Um papel demasiado pequen o para se poder apreciar, mas pareceu muito nervoso e com a voz um pouco instável.

Aia de Amelia
Luisa Tavares: uma aparição fugaz, mas não comprometeu. Sera necessário escutar mais para fazer uma apreciação mais global desta jovem soprano portuguesa.

Orquestra Sinfónica Portuguesa - Razoável para o bom, com os defeitos apontados.
Coro do Teatro Nacional de São Carlos - A subir de forma, já não hesito em dar 11 valores ao coro, pelo menos nesta produção.

Produção (cenário, figurinos e adereços):
Royal Opera House (Londres): Anódina, banal e a tentar ser certinha historicamente, datada.


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