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11.12.04

S. Carlos vence tarefa difícil 

O Teatro de S. Carlos vence a tarefa relativamente difícil de conseguir uma interpretação de um solitário acto da Walküre de Wagner. Apresentado em versão de concerto, ou seja, duplamente amputado do seu sentido original no fluxo de um drama completo e sem ser encenado. Sabe-se que Wagner chegou a fazer o mesmo, por dificuldades financeiras, e que este acto é dos mais independentes no contexto da Tetralogia. Também não é dos momentos mais complexos para a orquestra dentro da Tetralogia de Wagner, não querendo dizer que é obra fácil, mas o terceiro acto da mesma obra é bem mais complexo, e nem sequer se trata da cavalgada que inicia o acto, mas da incomensurável tensão, da vertiginosa caminhada de Wotan, e do momento de uma terrível exposição das cordas no final quando Wotan se despede de Brünnhilde na montanha cercada pelas chamas...
Neste brevíssimo, por falta de tempo, comentário quero dizer que o concerto da Orquestra Sinfónica Portuguesa foi de nível elevado e que os cantores foram do melhor que se pode encontrar em qualquer teatro do mundo. Gambill, Sigmunde, apesar de rouco (talvez se trate de um resfriado) foi soberbo, o fraseado apropriadíssimo, o sentir do texto, o domínio absoluto da partitura, tinha uma estante à frente mas não virou uma única vez qualquer página (!) o sentido da entrada, a expressão de angústia quando pede ajuda ao pai, Wotan. O tremendo final em que revela a espada e comete incesto com a sua irmã gémea, Sieglinde, é um momento de enorme poder sonoro, pena a ligeira rouquidão que lhe apagou os harmónicos mais elevados tornando a sua voz um pouco surda, pouco metálica. Limitou-se a desafinar algumas vezes em entradas fora de tom, são detalhes que se perdoam atendendo ao enorme tenor que tivemos ontem no CCB.
Elisabete Matos surpreendeu pela capacidade vocal Wagneriana, mostrou-se um soprano dramático de grande envergadura, musical, inspirada na colocação da voz no ponto certo e mais apropriado ao texto, densa, pujante, um papel trabalhado ao detalhe, estudado nos seus aspectos mais subtis. A precisar de mais duas ou três récitas para atingir a desenvoltura total e uma fluidez absoluta, curiosamente foi dos cantores a única que precisou de seguir as suas linhas a partir do papel que tinha em frente. Quando cantar como Gambill (e Fink) com o papel completamente decorado conseguirá, certamente, dar essa imagem de total liberdade que faltou ontem. Comete ainda o erro de atrasar notas sustentadas para ter o prazer de se escutar e interrompendo o fluxo sonoro e o ritmo. Um tique que tem de ser combatido a todo o custo. Wagner não é Donizetti. Mas compensou com momentos de grande beleza, que chegaram a comover, instantes mágicos que nos lembram os tempos heróicos da ópera Wagneriana. A parte mais lírica do momento de amor que precede o final da ópera, de grande intensidade, foi também tocante, emocionante. Elisabete Matos provou que é uma cantora de uma qualidade superlativa em qualquer parte do mundo.
Para Fink, Hunding, apenas uma palavra: Olímpico!
O homem certo no lugar certo, um baixo inspirado, conhecedor da obra, profundo, rutilante e vibrante nos agudos, denso nos graves, com um sentido total das frases e da interpretação, de uma potência surreal, raivoso nos momentos certos, pomposo onde devia ser. O mau carácter de Hunding revelado à mais íntima fracção! O melhor dos cantores em palco, se é que se pode dizer isso do concerto de ontem.
A direcção de Peskó esteve segura, foi o primeiro concerto em que pude assistir ao maestro a conduzir a orquestra com o nível que o seu currículo deixava ver anteriormente, não foi capaz da energia e capacidade de propulsão de um Thielemann, semanas antes no Coliseu, não foi capaz de imprimir uma tensão dramática profunda à orquestra, faltaram densidades, nomeadamente nas notas mais sombrias dos metais. Mas esteve seguro, leu bem o texto, seguiu a partitura com correcção. Creio que estudou a fundo o papel, desta vez, e conseguiu superar os obstáculos levando a interpretação a bom porto. A crítica negativa que tem tido por parte da imprensa portuguesa pode ter estimulado o trabalho, que se mostrava desinteressado, deste maestro húngaro. Os parabéns ao maestro por este concerto.
Orquestra: cuidado trombones com a afinação, o trompete baixo esteve bem nos solos mas deixou de se ouvir nos pontos em que confere tensão com notas ponteadas aqui e ali, não se deve confundir simplicidade musical com falta de importância da frase. O trompete solista esteve luminoso, as madeiras estiveram muito bem (com detalhes de coesão e melhorar), o oboé deslumbrado com a beleza do tema que tocava (a espada) atrasou um pouco e ficou sem tempo para articular o motivo que se seguia. Num ponto muito localizado faltou coesão nas frases partilhada por clarinetes e oboés, mas num concerto público isto é apenas um detalhes. O clarinete baixo esteve perfeito. Bom o corne inglês.
As cordas foram desiguais, os violoncelos foram irrepreensíveis, Irene Lima com um solo muito bom deu-nos a perspectiva correcta do amor condenado que se avizinhava. Faltou massa neste naipe porque em vez dos 12 que Wagner pediu apenas 9 estiveram em palco, um número ridículo de instrumentos face ao efectivo orquestral global. Repare-se que estavam em palco oito contrabaixos! Apenas mais um violoncelo não marca qualquer diferença. Esse aspecto foi notório no prelúdio e na parte final do acto. Os contrabaixos estiveram também em belo plano.
As violas estiveram mal, o som foi fraco, pode-se dizer que foi mesmo feio, depois de ouvir a sonoridade deste naipe da orquestra da ópera de Berlim dias antes, densa, encorpada, substantiva, coesa; foi confrangedor ter de escutar entradas desligadas, sonoridades anémicas, sons feios, harpejos apenas vistos pelos arcos e não ouvidos com coesão e densidade, não se trata de dar apenas as notas certas, de não trocar entradas, trata-se de som, de plasticidade, faltaram ontem.
Os violinos estiveram bem, afinados, mas faltou som, beleza de som e ao mesmo tempo faltou peso nos violinos nas partes tecnicamente mais complexas do final do acto em que, cada vez que a dificuldade técnica subia, menos se ouviam os primeiros violinos. Notei que o tal concertino auxiliar que tocava apenas com a ponta do arco no concerto da Universidade Nova, tocou com o arco todo neste concerto! Do mal o menos...
Se o concertino principal se preocupasse menos em entrar depois da hora para receber palmas de vaidade e circunstância se preocupasse em fazer o naipe tocar mais coeso e com maior elegância sonora, talvez cumprisse melhor o seu papel. Mas apesar destes considerandos tanto as violas (estas pior) como os violinos acabaram por ter uma prestação positiva, mas inferior à do conjunto.
Os metais estiveram muitíssimo bem, uns pequenos excessos aqui e ali mas com muita dignidade. Os tímbales foram também irrepreensíveis. Sobre as harpas falo mais tarde, bem como de Alban Berg e outros detalhes.

Um concerto em que os erros apontados foram menores. Uma interpretação global de grande dignidade, deu prazer ouvir Wagner pela OSP e por estes cantores, com esta direcção. Mas o trabalho tem de continuar, o Tristan do ano passado cairá em saco roto se não se fizer uma encenação, o segundo acto da Walküre espera-se, o terceiro, o Siegfried, etc, etc...
Tenho a impressão que esta orquestra, com a correcção de muito pouca coisa como tocar com instrumentos melhores e substituir o concertino principal, começa a poder ser uma orquestra de nível internacional. Tem também de tocar mais liberta e a arriscar mais. A comparação com Thielemann e a Ópera Alemã de Berlim é inevitável, a OSP, atendendo ao pouco tempo de estágio com Wagner, esteve praticamente ao mesmo plano, os cantores ontem no CCB, comparados com os que se ouviram há uns dias, foram incomparavelmente melhores. O maestro Peskó não tem o arrebatamente de Thielemann, é mais sereno e não tem a queda para Wagner do alemão, que aprofundou a direcção deste compositor ao limite, mas foi digno e conseguiu uma boa condução.


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