<$BlogRSDUrl$>

15.12.04

Ópera no Teatro Aberto 

O Teatro Aberto continua em forma no capítulo musical, pudemos assistir a algumas canções (ciclos Viagem aos Alpes e Cantos do Fim do Ano) e a um bom trabalho na encenação de João Lourenço da Ópera de Câmara "Uma Questão de Confiança", obras de Ernst Krenek (1900-1991), com cenário modulares sobre rodas, que se articulavam empurrados por dois homenzinhos de chapéu vestidos de fato preto, inspirados por Magritte. Um João Paulo Santos a tocar piano, como bem sabe, e um grupo de quatro cantores, Ana Ester Neves, Carlos Guilherme, Catherine Rey e Luís Rodrigues.
Os actores de chapéu foram Carlos Pisco e Cristina Rodrigues. Os cenários foram ideia do próprio João Lourenço, os figurinos ficaram a cargo de Maria Gonzaga.

A ópera muito bem encenada, e com uma ideia cenográfica muito inteligente para um orçamento, provavelmente, muito baixo. Eu sou um pouco suspeito pois tenho uma predilecção especial pelo pintor belga. A ópera viveu de cantores/actores bem preparados, com vozes colocadas no lugar. Todos os cantores são melhores actores/cantores do que meros cantores e cultivadores da pura vocalidade.
Nota-se sobretudo em Catherine Rey (soprano) que tem um tímbre francamente desagradável no lied, pouco encorpado, esganiçado diria mesmo, mas acaba por cumprir bem o trabalho numa encenação operática embora mesmo que não esquecendo a sua articulação ofegante e um pouco em stress que me desagrada.
Ana Ester Neves (soprano), tem um tipo de voz encorpado muito mais denso que Catherine mas parece-me que tem harmónicos fora das frequências normais, recomendaria uma análise espectral da voz para perceber o que se passa com esta cantora, parece-me uma questão nervosa, as cordas vocais entram em tensão e respondem inarmonicamente, este efeito é notório no registo médio (onde os harmónicos presentes são muito audíveis) o que no lied soa como se cantasse continuamente desafinada, crispadamente, para que os leitores me entendam, numa imagem mesmo assim pouco exacta. Na ópera, mais solta, mais à vontade no papel esta característica atenuou-se e acabou por ter uma composição muito competente.
Carlos Guilherme é um tenor regular mas bom actor, cumpriu com merecimento na ópera, no lied foi francamente fraco, agarrado ao papel, leu em lugar de interpretar, mostrou que não está à vontade no género canção em língua alemã.
Como actor cantor compôs um papel em que oscilou rapidamente entre o burlesco convencido e o despeito de se ver superado no engano que tinha preparado ao marido da sua putativa amante...

Luís Rodrigues (barítono) surpreendeu, foi francamente bom no lied, a canção Politik foi mesmo o ponto alto da primeira parte. O seu fraseado está mais redondo, menos sacudido, do que nas últimas oportunidades em que ouvimos o cantor. O seu "legato" está claramente melhor. A sua potência vocal foi elevada sem gritar. Interpretou com convicção o texto, liberto do papel e do texto passou a interpretar em vez de ler. O ponto alto nas duas partes deste domingo no Teatro Aberto.

A direcção de João Paulo Santos na ópera foi segura e muito certa no piano. A introdução inicial, o andante da suite opus 26, com um desacerto menor, foi também tocada com energia e sonoridade cativante.

Uma palavra para a obra de Krenek: a ópera é muito mais complexa musicalmente do que parece à primeira vista. Está muitíssimo bem construída, a caracterização musical dos personagens é sublinhada de forma muito subtil, mas está lá. O frenético e inconstante Richard (Guilherme), o ponderado, meditativo, aparentemente desconfiado e, de certo modo, hesitante Edwin (Rodrigues). As suas mulheres, Gloria (Catherine Rey), leviana, sonhadora mas inconsequente, irritante mesmo, um papel muito adequado ao tímbre seco e, também, irritante de Catherine Rey ao passo que Ester Neves no papel mais denso de Vivian é também muito bem sublinhada pela música, o seu tímbre com mais corpo é, curiosamente, o ideal para a serena e auto-confiante mulher de Richard. Muito bem escolhidas estas duas vozes. Vivian dificilmente parte mas quando se decide nada a faz parar. João Paulo Santos esteve bem neste papel de oráculo musical, nesta obra dodecafónica (com citações suavizantes) por um Krenek que é uma surpresa positiva para muitos.

Resumo: uma primeira parte pouco conseguida por falta de motivação da maior parte dos cantores para o lied. Uma segunda parte operática de qualidade elevada.

Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?