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25.11.04

Wagner 

Uma performance da Walküre é uma celebração de vitalidade, de paixão, cólera, amor, violência, ódio, ressentimento, infidelidade, perfídia, incesto, sexo, poder natural e sobrenatural, reflexão sobre o cosmos, reflexão filosófica sobre a condição humana, metáfora subtil da vida e da morte.
Não se pode reduzir esta obra maior de Wagner a um mero primeiro acto, uma espécie de história de amor descontextualizada. A Walküre é uma obra prima da História Humana, um produto eterno, reflexo de uma forma de pensar que tinha acabado de descobrir que o poder do Homem se sobrepõe ao poder dos Deuses, de tal forma que cabe ao Homem a invenção e reinvenção desses mesmos deuses, eles mesmos cópias dos humanos.
Wagner necessitou de muitos anos de aprendizagem e peregrinação para chegar à Walküre, ao Tristan e ao Parsifal. Aprendeu a língua com as Fadas. Rienzi foi a escola. O Holandês foi uma consolidação de saberes rematada com essa espantosa consagração do espírito do canto e da Alemanha que é o par Tanhauser - Löhengrin, obras já amadurecidas, que viriam a ter nos Mestres Cantores, obra bem mais tardia, o desfecho inevitável. É, no entanto, na Tetralogia, e na Tetralogia com a Walküre, que Wagner atinge a força vital de uma obra de arte total, que transcende os conceitos do mero teatro ou da música para ser uma escatologia filosófica do Wagner enquanto pensador e génio. Não, não nos esquecemos de Tristan ou do Parsifal. Tristan é apenas o momento vital dionisíaco, o momento criativo em que Wagner mais longe foi, mas em termos de subtileza musical, em termos de erotismo, de refinamento dos sentidos, não tão longe como na filosofia da Walküre. Parsifal é o declínio de um homem que se sente velho, degradando-se e cedendo à moral que sempre negou. Em termos musicais e cénicos é uma criação que afirma com veemência os seus propósitos. Em termos estéticos e psicológicos é apenas o retrato de um homem amedrontado pela iminência e perspectiva da morte. O Parsifal é a representação, ela mesma, da morte que Wagner teme.
A Walküre é um momento fundador, é a verdadeira explicação de toda a Tetralogia. Na Walküre é Wotan que admite perder o poder e tornar-se um homem comum. O vero crepúsculo que se anuncia nas suas palavras do segundo acto: "É o fim! O Fim!" O fim dos deuses, dos ídolos, dos opressores (?), o nascimento do herói que se anuncia, por Brunnhilde, quando esta diz a Sieglinde que tem no seu ventre a esperança do mundo. Não exactamente assim, mas através da música, o leifmotif da "redenção pelo amor", nome errado, no nosso entender, que apenas surge em dois pontos em toda a Tetralogia, neste terceiro acto e no final do Götterdämmerung, quando Brunnhilde já se imolou, quando o fogo nos céus já se diluiu, quando o mundo está, finalmente, desembaraçado de deuses e o homem, vigoroso, finalmente solitário e senhor do seu destino tem pela frente todo o tempo do mundo. Os deuses ficarão eternamente no seu crepúsculo, numa morte que vem devagar, tão devagar quanto o esquecimento, que é a verdadeira morte. Uma esperança nova é anunciada, também uma redenção. Este tema deveria ser chamado de Tema da Esperança.
É no primeiro acto, que ouvimos na última segunda feira, que o drama se inicia, a tempestade, tão contida na sua orquestração, é o ponto que cria a espectativa, a tensão. Uma tremenda força, um fluir trágico que emana das enorme torrente que as paixões e os ódios humanos são capazes de gerar. Em obstinadíssimos trémulos nas violas e segundos violinos, em crescendos e diminuendos, em vagas de chuva, vento e paixão. Rajadas que nos atingem de uma forma trágica e quase cósmica. Notas de música remniscentes de um Rei dos Álamos, perdido algures na nossa memória dos instantes trágicos, são as gotas de chuva que nos martelarão a consciência ao longo de toda acção que se segue. Mais fortes, mais densas que o clamor de Dönner que se escuta nos metais a meio do prelúdio. Sem parar, sem demoras, com uma cadência inexorável. A caminho da morte, mas também a caminho da esperança que se escuta num ciclo aberto que o Crepúsculo profetiza.
Foi no prelúdio que a interpretação de Thielemann atingiu o ponto mais alto. As cordas mostraram uma sonoridade densa, compacta, quente. A dinâmica foi variada de forma intensa e apaixonante. Thielemann tem uma pulsação rítmica vigorosa. Dir-se-ia uma locomotiva a puxar pela orquestra. Percebeu-se, no prelúdio, que as cordas da Orquestra da Ópera Alemã de Berlim são um trunfo de peso. As violas e os violoncelos tocaram com uma intensidade dramática e uma plasticidade sonora, com uma coesão, raramente ouvidos por estas bandas, e que se repetiu ao longo de todo este primeiro acto. Thielemann prometia muito, mas seria muito difícil partir deste prelúdio e conseguir mais, cada vez mais, mais tensão, mais paixão... Wagner conseguiu ao longo da obra, subiu a intensidade dramática no segundo acto, cujo prelúdio é um convite ao mergulho no tremendo drama que se reinicia e se adensa, mesmo que o público regresse do bar, o início do terceiro acto é a cavalgada que dispensa apresentações. Wagner consegue aumentar a dimensão dramática da sua ópera em cada início de acto, num arco de crescimento que acaba com a despedida de Wotan no rochedo de Brunnhilde.
Há quem diga que basta ler bem Wagner, Wagner é auto-suficiente, tudo está na partitura! Não é bem assim, o intérprete, o director, tem de saber dosear a paixão, a emoção, a fúria. Tem de saber domar os ímpetos dos músicos. Tem de extrair o máximo em cada instante. Nesse aspecto Thielemann pareceu demasiado agarrado à partitura e aos tempos. Demasiado "em cima" dos músicos para que estes se libertassem. Demasiado linear, sem atingir o âmago, sem extrair o máximo em cada momento. Talvez se tivesse respeitado em rigor a instrumentação que Wagner prescreve, talvez o equilíbrio sonoro fosse mais fácil de obter. O número de primeiros violinos deveria ser igual ao dos segundos, 16, não foi. O número de violoncelos deveria ser igual ao número de violas, estas eram realmente 12, mas cellos eram apenas 10. Wagner exigia 6 harpas! Não era megalómano, o que se passa é que apenas duas harpas deixam de se ouvir no final do primeiro acto, têm volume sonoro insuficiente. Se Wagner colocou 6 harpas na partitura quem é Thielemann para tocar com apenas duas?
Resumo: um primeiro acto insuficiente para criar a força dramática da obra de arte total: Walküre. Instrumentação desadequada à partitura não ajudou. Leitura demasiado linear, demasiado crispada, mas muito eficaz e apoiando os músicos, ao mesmo tempo que é "quadrada". Ritmo avassalador de Thielemann. Acto único reduzindo à partida toda e qualquer ideia interpretativa lógica.
Final do primeiro acto da Walküre empolgante em termos orquestrais, fraco em termos vocais.
Orquestra desatenta e pouco coesa na Viagem de Siegfried. Marcha fúnebre de Siegfried arruinada pelos trombones e restantes metais. Imolação de Brunnhilde e final do Crepúsculo: mal a soprano e muito bem a orquestra e direcção, o final foi belo sem ser emocionante, faltou o pathos de um um drama musical inteiro.
Vozes muito fracas, nem vale a pena voltar a referir o assunto, arruinaram também qualquer leitura séria.
Metais pouco coesos e, paradoxalmente, a cantar mal a música de Wagner. Esqueci-me de referenciar no primeiro texto que escrevi sore este concerto que o trombone contrabaixo foi, claramente, o pior instrumentista em cima do palco do Coliseu. Som feio, arrastando a música, ficando para trás, notas esborrachadas, comprometeu muito o conjunto. O trompete baixo, o primeiro trompete, o primeiro clarinete e o clarinete baixo, o violoncelo solo na Walküre (depois, nos excertos do Crepúsculo, foi muito menos seguro), o oboé e corne inglês na Walküre, a flauta solo em todo o concerto, foram elementos de grande valia e estiveram particularmente bem. As tubas deram uma cor notável ao conjunto das trompas. O som dos oboés em conjunto com o dos metais deu uma cor fúnebre extraordinária (Wagner lá sabia porquê) ao início da marcha fúnebre de Siegfried.

Um concerto para nota positiva, sem ser elevada. Um concerto que nunca poderia ser um crescendo, quase insuportável, mas deslumbrante, de tensão dramática, porque desprovido da lógica que presidiu à construção global das obras. Por muito que Wagner tenha apresentado excertos em concerto, essa apresentação foi sempre vista como um aperitivo para o grande momento, o momento da representação, e muitas vezes ditados por motivos meramente financeiros... Os mesmo motivos financeiros que impedem, parece, uma interpretação completa de uma ópera de Wagner em Portugal. Desde o Parsifal no S. Carlos, já quase esquecido, o verdadeiro Wagner abandonou este país.

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