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10.11.04

Saul e o Outro 

Saiu a crítica de Manuel Pedro Ferreira à Oratória Saul de Händel, concerto desta Segunda Feira na Gulbenkian.
Não pretendiamos criticar o crítico, mas ao ler o texto descobrimos vários pontos de inexatidão e até de desacordo.

Veracidade histórica – ortodoxia bíblica – numa crítica de arte
Falar da veracidade hstórica ou concordância biblica numa oratória barroca de Händel é um anacronismo. É engraçado como nestes tempos de descontrutivismo e relativização se possa dizer que Händel desconstruiu o texto bíblico! A própria realidade histórica do Velho Testamento também é muito discutível, ninguém lê o Velho Testamento como um livro do José Mattoso, ou sequer do Hermano Saraiva (alguém que nunca foi muito fiel aos documentos), ou de um teórico da Nova História, que já é velha... Manuel Pedro Ferreira fala de um Velho Testamento que conhece de uma tradução, esquece os documentos anteriores, esquece, além da poligamia, os sacrifícios humanos a carga "desumana" que foi eliminada da Bíblia pela escola de Samaria, ou a rescrita dos textos feita pelos sacerdotes de Jerusalém quando esta cidade se tornou hegemónica no seio da sociedade hebraica/judaica, momento em que o único Altar da Divindade permitido foi consagrado no Templo desta cidade. Não era função de Händel respeitar o texto bíblico, nem era função do crítico criticar Händel em aspectos de ortodoxia religiosa. Seria muito mais interessante uma crítica artística, tendo em conta o espaço reduzido de que a crítica dispõe nas páginas dos jornais portugueses.

Saul “uma obra menos marcante” ?
É precisamente neste ponto da Arte, que o crítico do Público evita nesta parte do texto, que enuncia um dogma como se tratasse de uma verdade absoluta, referindo-se a Händel diz: "ainda que não seja uma das suas obras mais marcantes". Mas afinal o que é isso de uma das obras "mais marcantes"? Serão todas marcantes, umas mais que outras, sendo, por consequência o Saul umas das obras menos marcantes? Será que Händel tem obras marcantes, obras menos marcantes e obras não marcantes? Neste caso o Saul seria uma obra tipo meias tintas, "marcante ma non troppo"?
Afinal que quer o crítico dizer com uma obra mais ou menos marcante de Händel? Quer dizer que acha outras mais marcantes, ou seja, que o Saul lhe diz pouco? Não percebemos, nem contextualiza, nem enuncia, não explica o significado do que diz. Será que não é marcante pelo que diz no parágrafo seguinte, o tal da falta de ortodoxia canónica de Händel. Recorda-se ao leitor que Händel não vivia no interior do Minesotta de hoje, por muito puritana que fosse a Inglaterra de ontem! Händel alterou, na forma muito própria do barroco, mas também utilizando conceitos dramáticos e teatrais próprios de um grande génio universal e eterno, os textos sagrados. Não cremos que esse qualificativo de "pouco marcante" ou "não das mais marcantes" se refira a ortodoxia bíblica. E aqui reside o ponto, parece que a análise de Pedro Ferreira se baseia no seu gosto pessoal. E no caso de uma crítica a um compositor como Händel, do qual Beethoven dizia ser o "maior compositor que jamais tinha existido", a questão de gosto do crítico não interessa para nada aos leitores do seu jornal nacional, interessa se explicar as suas razões com argumentação. Se formos basear a crítica no número de concertos públicos e em gravações encontramos o Saul, nos últimos tempos, como uma das obras mais trabalhadas. Nomes como McCreesh, Jacobs, Hacker (que na Berlin's Komische Oper em 1999 dirigiu uma representação encenada), Lutz, Harnoncourt, Neumann, Pinock, entre tantos outros, dirigiram o Saul. Documentos não faltam sobre a enormíssima beleza musical de Saul, a sua originalidade espantosa.
Será que Pedro Ferreira se refere, por comparação subliminar, ao Messias. É certo que Messias marcou, de tal forma que se tornou quase insuportável de ouvir; uma vez tão difundido e repetido. De qualquer forma, espera-se de um erudito, e Manuel Pedro Ferreira é um erudito, que explique o que quer dizer.
Claro que Saul é marcante, é uma obra de uma beleza deslumbrante, de um domínio da arte dramática notável, quer a obra se destine ou não a ser encenada, encerra uma riqueza tímbrica e harmónica impressionante. O uso de carrilhões, dos tímbales originais, muito mais profundos que os usados no concerto de anteontem, dos solos de orgão, o solo da harpa, que Jacobs começou por dirigir e depois desistiu, trombones... Händel domina a arte de compor para a voz, coro e solistas, como poucos compositores da história da música. Creio que esta arte foi desenvolvida em Itália. Händel é muitas vezes mais eficaz que outros grandes vultos da música na escrita vocal. Saul é uma oratória a meio caminho da ópera, é um ponto de viragem extraordinário, a escrita vocal é impressionante e, claramente, marcante.

Crítica ao Concerto, René Jacobs
Voltando à crítica de Manuel Pedro Ferreira. Quando escreveu sobre Jacobs disse que este tinha perdido o pé algumas vezes, mas não foi muito longe na análise. A razão profunda desta falta de domínio tem uma razão simples: Jacobs foi um excelente cantor, o seu trabalho faz-se, sobretudo, com os cantores. Jacobs tem de se apoiar em excelentes instrumentistas, em orquestras muito batidas em concerto uma vez que não tem grandes dotes de direcção de grandes conjuntos. O concerto também não é uma gravação, onde as coisas podem ser repetidas se correm mal. E Jacobs não é um bom maestro de concerto, nunca o foi, nunca o será. Quem vê Jacobs dirigir inúmeras vezes e depois ouve os discos percebe imediatamente uma abissal diferença; diferença que em Harnoncourt, para não ir mais longe, não se nota. Jacobs bate compassos, avança colado à partitura que tem em cima da estante, bem alta para ver bem as notas e não se perder. Jacobs dirige o baixo contínuo. Jacobs dirige inclusivamente trinta compassos de um solo de orgão rematado por uma suspensão para dar entrada à orquestra nesse ponto! É evidente que dirigir é uma palavra errada, bate compassos, que é aliás o que sabe fazer em concerto. Jacobs raramente dá entradas à orquestra, embora ajude o coro. Jacobs anda sempre meio compasso adiantado sobre o tempo da batida, stressado. É uma forma de dirigir, os músicos também sabem com o que podem contar. Claro que os momentos em que a precisão é vital, em que temos páginas de ritmo complexo como fugas ou entradas canónicas que se encaixam num efeito de puzzle contrapontístico, saem sempre em perda. Isso verificu-se no concerto de Segunda Feira. O primeiro acto foi um exemplo de desacerto continuado entre a orquestra e o maestro.
Felizmente o Concerto Köln é excelente, felizmente Jacobs trabalha bem os ensaios explicando o que quer. Como o trabalho com os cantores, sobretudo os jovens ainda sem vícios, é feito com grande rigor, o resultado final, pese a insegurança e manifesta incapacidade para a regência em palco do maestro, acaba por ser bastante bom. Não é, no entanto, excelente.
Não consegue aspirar à perfeição. Attilio Cremonesi é um exemplo de maestro, por sinal acarinhado por Jacobs, com um estilo interpretativo inserido na mesma linha do belga, mas que, em concerto, tem um domínio absoluto da partitura, ao contrário de Jacobs que é dominado em absoluto pela partitura.
Outra situação incrível é a direcção do baixo contínuo nos recitativos secos, isto mesmo que apenas um instrumento acompanhe o cantor! Ou seja: Jacobs esperava pelo momento em que supunha que o cantor estava para finalizar a nota para antecipadamente dar entrada, muitas vezes apenas para mandar entrar um músico que já tinha forçosamente de ter entrado anteriormente sob pena de ter perdido o momento exacto, Jacobs tentava comandar um músico que devia esperar não pelo canto e atitude do cantor, mas pela entrada do "maestro". Jacobs conseguiu que os recitativos a seco fossem de uma dureza total, muito pouco plásticos, sem subtileza. Estes recitativos secos perderam qualquer hipótese de ter uma ênfase ditada pela variação dos tempos e acabou por destruir qualquer hipótese de recriação da retórica barroca destes momentos narrativos.

Solistas Vocais
A soprano Emma Bell soprano (Merab) só é revelação para quem não a conhece, parece uma LaPalissada mas é verdade inegável. Para mim um dos pontos de interesse deste concerto era esta soprano de elevados dotes vocais e um corpo sonoro arrepiante. Alia isto a uma grande capacidade de dizer e a uma técnica barroca cada vez melhor, sem o vibrato excessivo e dispensável de Rosemary Joshua, a soprano que fez Michal. Esta tem uma voz vulgar mas, felizmente, compensou pela composição do personagem. Infelizmente os vícios vocais desta cantora mais madura, logo menos sensível a Jacobs, deitaram a perder o que poderia ser uma interpretação correcta.
Sobre Gidon Sacks o baixo que fez de Saul, Pedro Ferreira diz que este tem timbre rude, que me permita Manuel Pedro Ferreira, mas timbre rude têm as vacas! Rude é a emissão, rude é a articulação, com impurezas, com flutuações inesperadas nos harmónicos. O que Sacks tem é uma voz pouco ágil, é uma voz muito encorpada de baixo, mas que, mesmo assim, teve problemas de emissão e falta de profundidade (potência) nos graves muito graves, isto dificultou a articulação o que o levou a atrasar-se. O tímbre nas frases mais redondas até não é mau. O problema foi mesmo a articulação sacudida e pouco ágil, na ânsia de cantar tudas as notas começou a perder a emissão e a fluidez. O tenor Jeremy Ovenden (Jonathan / Abner) foi vulgar e andou um pouco aflito a tentar ganhar mais pujança na emissão, pareceu-me cantar tudo em stress e aflito.
Lawrence Zazzo, o contratenor, fez um David em crescendo, tem agudos bonitos, mas teve entradas muito fracas no primeiro acto, e entrou quase sempre desafinado a colocar posteriormente a voz no ponto certo, foi corrigindo e fez muito bem o último acto.
Michael Slattery, tenor (Sumo Sacerdote / Feiticeira de Endor), tem uma bela voz, com bom corpo, sente-se que pode vir a ser um grande cantor tendo em conta a sua juventude. Creio que fez um Sacerdote muito bom e uma feiticeira de Endor excelente. Aqui notou-se o trabalho de Jacobs, o cantor muito jovem caracterizou a Feiticeira de forma notável e aqui concordo plenamente com o crítico do Público.

Coro
O coro esteve simplesmente notável, é evidente que um coro de 35 vozes, se for bom, consegue uma emissão sonora de grande potência, sem perder recorte, sem gritar. Aqui a surpresa de Manuel Pedro Ferreira revela a pouca escolha que temos em Portugal em termos de coros e a pouca relativização dos nossos críticos face ao deve ser o padrão normal em termos musicais. O RIAS Kammerchor é excelente, talvez o melhor elemento em palco, valorizou o concerto e deu uma vida enorme às páginas de Händel.

Orquestra
Segundo a minha opinião tivemos um excelente concerto na parte da orquestra (com os defeitos apontados à regência), um Saul que nunca aspirou à perfeição, nem poderia com Jacobs. Mas interpretado de forma muito cuidada pela orquestra, coro e solistas vocais. Uma harpa de grande nível, um violoncelo de uma sonoridade muito bela, oboés apareceram desafinados muitas vezes, flautas muito bem integradas com os violinos, fagotes, trombones, trompetes, tímbales, cordas quase sempre bem. Momentos de grande confusão, sobretudo pela já assinalada incapacidade para a direcção, em concerto, de René Jacobs.
Um aspecto assinalável foi a belíssima sonoridade do Concerto Köln. Tirámos a barriga de misérias com o verdadeiro som de uma orquestra com instrumentos originais neste país abandonado...

Afinação
A Afinação foi com o lá a 415Hz e o temperamento Vallotti. Este temperamento é ingrato para a afinação dos oboés e sobretudo para a afinação dos trompetes, Händel tem uma paleta harmónica variada nesta obra. O temperamento usado, se a afinação for muito exacta, resulta familiar aos nossos ouvidos por estar a caminho do temperado por igual mas fica muito agreste para os sopros e é ingrato para as cordas. Creio ter sido essa a razão da desafinação dos oboés relativamente aos violinos.
Não creio que Händel conhecesse ou usasse Vallotti em 1739 em Inglaterra. Mas essa questão fica em aberto...

Crítica sobre Crítica
A crítica de Ferreira no jornal "O Público" acaba por ser uma crítica justa, os meus comentários são apenas temas para discussão, pontos de discordância sobre a essência de uma crítica, em alguns casos, não devem ser entendidos como um ataque ao crítico, são apenas questão de opinião e reflexão. Provavelmente os meus comentários sobre o concerto também serão alvo de muitas opiniões discordantes e isso é francamente salutar.

Resumo
A concepção global da obra por Jacobs foi o ponto forte do concerto. Gostámos da corência interpretativa do belga. Pena os pequenos defeitos enunciados.

H.S.


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