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7.11.04

Orquestras Sinfónicas Portuguesas e um Maestro 

Sexta Feira e Sábado 19h30m, concertos com entrada livre no auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa em Campolide.

Anunciada a Sinfónica Portuguesa, maestro Donato Renzetti. No primeiro concerto:
António Pinho Vargas, Reentering for Orchestra and Percussion Obligato.
Franz Joseph Haydn, Sinfonia n.º 101 em Ré «Clock», ou seja sinfonia o "Relógio".
Wolfgang Amadeus Mozart, Sinfonia n.º 38 em Ré «Praga», K. 504.

Não percebo o "Praga" em português e o "clock" em inglês. Deve ser uma razão mística mas adiante.

No segundo concerto:
Luís Tinoco, Zapping for Orchestra.
Franz Joseph Haydn, Sinfonia n.º 102 em Si bemol.
Wolfgang Amadeus Mozart, Sinfonia n.º 39 em Mi bemol, K. 543.

Não tinha planeado escrever nada sobre estes concertos, pelo menos hoje, estava à espera dos concertos da próxima semana, exactamente à mesma hora, no mesmo local, nos mesmo dias da semana, entrada livre. Mas algumas considerações sobre estes concertos são necessárias e urgentes.
Interessante a transparência sonora do auditório mas a acústica não é demasiadamente seca, a sala tem alguma reverberação (não muito elevada) que dá cor à música.

O anúncio de que se tratava da OSP induz em erro. A sinfónica é uma orquestra com um efectivo adequado a uma formação sinfónica, mas pode dividir-se em duas orquestras clássicas diferentes se for caso disso. Como o repertório em jogo era clássico, sendo as obras dos compositores portugueses destinadas a orquestra em formação clássica, foi o que aconteceu: nem um único elemento da orquestra, que se tenha percebido, realizou os dois concertos. Tivemos duas formações com 10 primeiros violinos, 8 segundos violinos, 6 violas, 5 violoncelos e 4 contrabaixos. Nos sopros os habituais pares de flautas, oboés, clarinetes, fagotes, trompas e trompetes, que podem ou não ser usados na totalidade, há sinfonias apenas com uma flauta, outras sem oboés mas com clarinetes, outras sem clarinetes mas com oboés. O que é certo é que a Sinfónica se dividiu em duas orquestras clássicas para dois concertos distintos.

O maestro Renzetti é uma velha raposa da regência mundial, é muito competente, sério, músico. Creio que a palavra "músico" é o melhor elogio que se pode fazer a um maestro. É muito atento aos detalhes e trabalha com os músicos a sério nos ensaios.
É pois um pouco estranho ver duas interpretações tão diferentes em dois dias. Falo da sinfonia 38 de Mozart, que escutei na Sexta Feira e das obras de Haydn e Mozart de Sábado. Enquanto na Sexta a interpretação foi pesada, pouco clara, pouco clássica na sua concepção, poder-se-ia pensar que isto se devia ao excesso de baixos nas cordas, ou a uma fraseado muito pesadão nos violinos, no Sábado o concerto foi um prazer de se ouvir. Claro que houve entradas pouco coesas, pouco exactas, sem ser na batida. Por exemplo a entrada da sinfonia 102 de Haydn foi uma catástrofe por falta de concentração dos músicos ao gesto do maestro. Claro que se ouviram deslizes nos dois dias, mas as duas orquestras completamente diferentes tiveram prestações muito desiguais em termos interpretativos. A sinfonia 38 na Sexta Feira foi desinteressante, o maestro parecia desligado dos músicos. No sábado houve música, vivacidade, alegria, o maestro estava em sintonia. Notou-se mesmo uma maior intensidade na habitual cantoria de Renzetti, algo desafinada por sinal, o que chegou a ser um pouco desagradável pelo lado puramente musical, mas divertido pelo lado da alegria e musicalidade.
Um dilema: duas orquestras diferentes iguais apenas no nome, dois concertinos diferentes, o mesmo maestro, num dia uma interpretação apagada e pesada, noutro uma interpretação viva e interessante!
É certo que o desenho do fraseado pelo maestro tentou ser colorido, muito clássico, com acentuações no lugar, isto em ambos os concertos mas notou-se maior fluidez no segundo, o efeito pretendido foi conseguido no Sábado, na Sexta ficou um pouco pelas intenções. Não se pode dizer que na Sexta as articulações fossem erradas, mas algo não funcionou.
Outro aspecto interessante de constatar é o facto do violino que está na primeira estante ao lado de Peter Devries (o concertino de Sexta Feira), toca apenas usando a ponta superior do arco! Como é possível? Outros usam apenas a ponta mais próxima da mão e não usam toda a amplitude das arcadas, num efeito visual e sonoro algo desconexo. Esta incoerência notou-se sobretudo na Sexta Feira mas repetiu-se um pouco no Sábado.
Os sopros estiveram francamente bem nos dois concertos e Renzetti elogiou a secção mandando levantar os sopros em primeiros lugar.

Em resumo: duas orquestras diferentes, numa um maestro com ar infeliz e um concerto morno. Com a outra orquestra um maestro feliz e muita musicalidade.

Penso que a grande razão foi mesmo a equipa de concertinos em cada concerto. O concertino é o elemento da orquestra que funciona como braço direito do maestro. Ao primeiro violino compete marcar as arcadas, o fraseado e a articulação acabam por ser marcados pelo concertino, ao concertino compete liderar o naipe dos primeiros violinos, inclusivamente acertar os momentos menos bons, dar entradas, conduzir a voz principal da orquestra, acertar a afinação.
Como pode ser possível liderar uma orquestra com os defeitos que Peter Devries demonstra? Defeitos que já foram tão dissecados aqui neste local que nem vale a pena repetir. Refira-se que o número habitual do concertino, para mostrar que é alguém, é chegar depois dos seus companheiros de trabalho para receber umas palmas tristes. Devries lá fez a tal habilidade no concerto de Sexta Feira, lá entrou depois dos outros armado em "artista". Se, além dessas chachadas tristes e fora de contexto, conseguisse liderar o seu naipe e a orquestra, se conseguisse dar coesão à orquestra, se tocasse de acordo com o que está escrito e não fingisse dirigir os seus pares a abanar-se continuamente, a dar umas cacetadas com o arco nas cordas, a entrar sistematicamente uns milésimos de segundo antes do tempo, se se preocupasse em seguir as indicações do maestro, se tocasse piano e pianíssimo onde está escrito na sua parte, sem excessos de sonoridade, talvez tudo pudesse correr melhor. Por outro lado o seu companheiro de estante poderia ao menos tocar com o arco todo e não apenas com metade!
Já Alexander Stuart (concertino do Sábado) e a sua companheira de estante fizeram um trabalho bem mais sério, integraram integrando-se, foram humildes perante a música, afinal a melhor forma de atingir a perfeição musical: sem perder a inteligência própria do intérprete acabar por ter interpretações em coerência com as obras e com o dirigente. Creio que foi este o segredo da diferença entre as interpretações dos dois concertos.

A obra de Luís Tinoco estreada no Sábado é muito interessante. Tinoco utiliza aqui uma linguagem tonal, com inúmeras referências a obras clássicas, utilizando os tiques clássicos bem conjugados para criar ironia sem sarcasmo, um ritmo vivo, uma utilização sábia da percussão, uma obra com imensa alegria, em que o elemento humorístico não esteve alheio. Todos estes ingredientes deixaram o público rendido à arte de Tinoco. Apenas o bater de tacão dos músicos da orquestra correu mal! Parecia um esquadrão de cavalaria descompassado e não o passo certo da infantaria de elite, mas isso acabou por dar alguma graça à interpretação e desculpa-se, afinal ninguém paga aos violinistas e seus pares para baterem com os pés...
Infelizmente não pude ouvir a obra de António Pinho Vargas, afinal um dos principais motivos de interesse do primeiro concerto.

Renzetti é um grande maestro e um grande músico e mostrou-o. Espera-se que a actual direcção do S. Carlos mude depressa o ex-titular Peskó dos programas para os quais está previsto (Mahler e Wagner imagine-se, só por gozo eu poria Peskó a dirigir esses compositores) e o substitua pelo italiano. É difícil transformar a idiomática de uma orquestra. Renzetti conseguiu a meio gás na Sexta Feira e plenamente no Sábado. Eu arrisco a dizer que está encontrado o futuro titular. E desta vez, finalmente ao fim de anos e anos de maestros medíocres ou acabados, a Sinfónica Portuguesa terá um titular digno desse nome.

Nota negativa para o público que primou pela ausência já que o público presente se mostrou conhecedor, o concerto de Sexta foi recebido com muita moderação e o concerto de Sábado com algum entusiasmo, mas sem os excessos bem lusitanos e bem provincianos dos bravo(s) desmedidos. Evidentemente que escutei concertos cheios de berraria bem piores que estes mas é assim este país de santanetes e afins. Faço um apelo a uma maior afluência de público aos dois concertos da próxima semana, Renzetti é um grande maestro e a orquestra (pelo menos na metade melhor) está em forma.

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