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8.11.04

Duas Valquírias 

Vamos ter, se a célebre temporada do S. Carlos 2004-2005 vier a ter existência prática, e se as previsões se mantiverem, dois primeiros actos da Valquíria. O primeiro acto a ir ao palco será sob a batuta de Christian Thielmann à frente da Orquestra da Ópera Alemã de Berlim já a vinte e dois de Novembro no Coliseu dos Recreios, concerto integrado no ciclo Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian. Quinze dias depois estaria, ou está (?), previsto o primeiro acto da Valquíria do S. Carlos sob a batuta de Zoltán Peskó, eventualmente, no CCB. Recomenda-se ao público interessado a audição das duas interpretações. É certo que existe uma epidemia programativa em Portugal com interpretação das mesmas obras em períodos de tempo curtos. O mesmo se tem passado com o Saul de Händel, hoje na Gulbenkian sob direcção de René Jacobs pelas 19h. O Saul é uma oratória que tem merecido a atenção de quase tudo o que é maestro no mundo da música antiga nos últimos anos, em detrimento de obras como Jephta. As modas na programação no caso da Valquíria podem ser úteis, poderemos comparar a interpretação de Peskó e de Thielmann. As orquestras são diferentes, é certo, mas o que conta, neste caso, é a concepção e a capacidade de execução. O público pode, enfim, ter termos de comparação e aquilatar das qualidades dos diferentes directores. A impressão indelével do concerto ao vivo é marcante, suplanta, de longe, qualquer gravação. O concerto público é o supremo meio de difusão musical, onde todas as emoções se jogam, o concerto é arte pura e concentrada. O primeiro acto da Valquíria não é uma das páginas mais exigentes de Wagner em termos musicais, ambas as orquestras estão à altura da obra e os solistas, a confirmarem-se os nomes de que se fala para o TNSC, estão ao mesmo nível.
Por outro lado o primeiro acto da Valquíria é auto consistente, é uma ópera dentro de uma ópera, um drama dentro de um drama, que por sua vez é uma peça do imenso painel da Tetralogia. Não funciona como muitos primeiros actos de outras óperas, muitas vezes apenas introduções e motivo para aquecer as vozes dos cantores! É uma obra magnífica que acaba na consumação de um amor breve mas eterno entre os dois motores da acção, nas costas de um marido embrutecido e drogado. Amor que gera o herói Siegfried. É, enfim, a matriz geradora do verdadeiro drama, o drama entre os humanos que nascidos da vontade dos Deuses (ou será o contrário) acabam por liquidar o Panteão num derradeiro Crepúsculo sobre as águas purificadoras do Reno. Um arco temporal que se fecha num período futuro, mas à escala humana e não divina. O período de tempo que medeia entre a Valquíria e o Crepúsculo: uns vinte e cinco humanos anos... É evidente que a mutilação da Valquíria em actos é redutora, desvaloriza o seu papel no contexto dramático, a sua exibição em concerto é um contra senso, uma maquinação simplista que destrói a noção que Wagner tinha da obra de arte total. Seria muito pior, no entanto, a apresentação do segundo acto desta ópera fora do contexto teatral e extraído da ópera da qual é o núcleo. Isto explica-se facilmente pelo profundo significado filosófico e pelo final do segundo acto, que recorre aos elementos dramáticos expostos no primeiro acto, a morte de Siegmund por Wotan durante o combate com o marido traído: o abominável Hunting. Ah! Como Wagner detestava os maridos traídos! O segundo acto fica suspenso da perseguição futura de Wotan à sua filha Brunnhilde e a Sieglinde, cujo desfecho fica incerto nas terríveis palavras de Wotan no final deste segundo acto. Fica ainda suspenso da falta da Cavalgada que os espectadores esperam como elemento simbólico crucial de toda a obra de Wagner e que inicia o terceiro acto. Quer se queira ou não a cavalgada é um dos momentos mais populares da obra de Wagner...
Em quinze dias, um tempo de escala demasiado humana para se poder apreciar uma obra em duas versões. A não perder, verdadeiramente pedagógico, este acaso é mais pedagógico do que dezenas de artigos de jornais ou documentários.
A aguardar e esperar para poder descobrir as diferenças, será estimulante. Espera-se apenas que a parte do TNSC se confirme uma vez que o programa da Gulbenkian está confirmadíssimo e não costuma alterar-se.

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