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2.11.04

Biber Sonatas do Rosário 

As 15 sonatas do Rosário para violino e baixo de Ignaz Franz von Biber, rematadas por uma passacaglia para violino solo (1674 ?), são obras de uma dificuldade técnica impressionante.
É quase impossível sequer imaginar tocar as sonatas na sua totalidade com apenas dois violinos, tal a diversidade de afinações que os instrumentos têm de suportar ao longo do ciclo do Rosário, Mistérios Inefáveis (traduzidos algumas vezes por "Gozosos"), Mistérios Dolorosos e Mistérios Gloriosos. Alice Pierot escolheu 8 das sonatas e concluiu o seu concerto na biblioteca do Convento de Mafra, quase no fecho do Festival Internacional de Música de Mafra, com a Passacaglia do Anjo da Guarda.

Programa: Sonatas do Rosário de Biber:
1,3 (Mistérios Jubilosos).
6,9,10 (Mistérios Dolorosos).
11,13,14 (Mistérios GLoriosos).
Passacaglia do Anjo da Guarda.

Usou apenas dois violinos que foi afinando de acordo com a scordatura da sonata que viria mais à frente, deixando um dos violinos a descansar, preparado de antemão para a sonata que viria depois. Sabe-se que os violinos têm de ter um tempo de relaxação para depois poderem ser tocados com a nova afinação sem se desafinarem catastroficamente.
É evidente que esta técnica nem sempre resultou em pleno, cinco ou dez minutos de espera não são suficientes para um violino se adaptar a uma afinação nova, ou seja, a uma tensão das cordas totalmente diferente do habitual. Esta situação foi muito complicada de gerir, nomeadamente na sonata nº 3, a segunda a ser tocada, em que o violino entrou praticamente em "estado de loucura" saindo harmónicos a cada arcada...
A música de Biber, se não for reinterpretada a cada passo, torna-se repetitiva. Creio mesmo que seria impossível estas sonatas serem destinadas a um interpretação sequencial. Primeiro pelas temáticas litúrgicas serem muito variadas, logo impensável para um só dia, mas para momentos e estados de alma diversos. Segundo, porque as afinações dos instrumentos são demasiado complexas para se poder pensar em tocar tudo de seguida. Terceiro, porque a natureza da música não se presta a uma interpretação sequencial. A obra tem de ser vista de acordo com a sua natureza simbólica
É, pois, um feito de vulto "Les Veilleurs de Nuit" consiguirem executar nove das 16 peças deste ciclo num único concerto. Alice Pierot no violino, Marianne Muller na gamba, Pascal Manteilhet na tiorba e Elisabeth Geiger no cravo e orgão são um agrupamento heterodoxo. A tiorba muito civilizada de Pascal parece um instrumento de um filósofo, muito sereno foi seguro e chegou a transmitir algumas emoções. A gamba de Marianne Muller é, no entanto, francamente banal, preocupada com a sonoridade, com a afinação perfeita, com a emissão de todo o tecido sonoro, deixou a poesia no tinteiro, faltou a improvisação, faltaram os momentos mágicos. No cravo e orgão, Elisabeth Geiger foi competente, gostei do dramatismo que emprestou aos momentos mais densos, usando registos muito sonoros do orgão. Foi convincente no momento do terramoto após a morte do Cristo, por exemplo. Mas era a Alice Pierot que competia ser a chama do vulcão neste concerto. A obra de Biber repousa toda no violino. Alice foi interessante nas sonatas dos Mistérios Jubilosos, foi igualmente interessante nos Mistérios Dolorosos, e de novo interessante nos Mistérios Gloriosos. Ou seja, não conseguiu transmitir a dor a angústia de Cristo entre o Monte das Oliveiras e a Morte no Madeiro, limitou-se a ser igual nos três momentos. Os afectos ficaram um pouco perdidos na técnica mais ou menos irrepreensível de Alice Pierot, pouco arrebatada em estados de alma e muito preocupada com os dois violinos e a sua afinação. A música terrivelmente difícil de Biber não deixou Pierot libertar-se para a transcendência.
Felizmente nos "Mistérios Gloriosos" voltou um pouco de Luz à interpretação de Alice Pierot. Sem ter um volume sonoro muito elevado, conseguiu transmitir alguma emoção à Ressureição, ao Pentecostes e à Assunção da Santíssima Virgem; as três sonatas que escolheu para esta parte do concerto. A passacaglia (dita do Anjo da Guarda) final foi muito arrastada e sofreu de novo da falta da capacidade de reinvenção de Alice Pierot. Uma Passacaglia repetitiva, facilmente banalizável, capaz de ser reduzida ao mau gosto com muita facilidade acabou por ser tocada de forma monótona e sem grande acentuação. É muito difícil classificar o que faltou, talvez uma maior acentuação, uma maior gama dinâmica, uma maior emoção, mas que faltou algo não haja dúvida...
Um concerto muito bom, a que faltou o sal do génio musical. O comentário final é simples: a coragem de Alice Pierot em abordar estas obras é notável. O concerto foi um prazer de escutar, mas talvez Alice Pierrot fizesse melhor em reduzir a ambição e executar apenas uma ou duas sonatas deste ciclo variando o programa. Pierot não tem capacidade para se reinventar a si e à obra de forma a conseguir manter um nível elevado ao longo de toda a execução deste ciclo complexo do final do século XVII.

Nota muito negativa para os intervalos antes da cada sonata para umas frases explicativas de Alice Pierot a que se seguia uma "tradução" do francês, aliás muito esforçada, do que Pierot dizia antes de cada sonata. Penso que esse esforço poderia ter sido mais ensaiado para se evitarem as situações caricatas que desconcentraram o público do que interessava: a música. Pierot não teve grande sensibilidade para o tradutor, dizendo frases longuíssimas e mostrou pouca capacidade de expressão verbal. O tradutor não ligava grande coisa ao que Pierot dizia e inventava o texto da tradução! Chegou a meter os seus próprios comentários e citou o "Guarda-me las vacas" no momento mais sensível do concerto, a sonata da crucificação! Foi um momento de surrealismo absolutamente delirante, a gargalhada antes da crucificação...

Nota negativa para os pais que levam as crianças aos concertos deste tipo de música, sabendo que estas não tiram qualquer proveito e incomodando quem quer escutar. Uma criança muito pequena passou todo o concerto a dormir e a ressonar debaixo do ar babado dos pais. Outras passaram o concerto todo a perguntar quando acabava, a fazer barulhos com as cadeiras, os sapatos, a amarrotar os papéis do programa, etc, etc,.. Isto não é chamar crianças para a música, isto é traumatizar e vacinar os petizes contra a música. Ao menos que os papás escolham programas mais de acordo com a juventude dos rebentos.


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