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29.11.04

Ben Heppner 

Na passada semana Ben Heppner brindou-nos com um recital na Fundação Calouste Gulbenkian. É irónico que um cantor wagneriano nos tenha dado um recital com Tosti, por exemplo, e na segunda feira anterior Thielemann tenha trazido um abominável cantor como Gould, para fazer um Siegmund totalmente incapaz e pouco amadurecido (ou amadurecido em demasia). Vejamos o programa:

Ben Heppner (tenor)
Craig Rutenberg (piano)

Edvard Grieg
Seis canções op.48

Jean Sibelius
Vilse, op.17 nº 4
Till kvällen, op.17 nº 6
Soluppgang, op.37 nº 3
Var det en dröm?, op.37 nº 4
Flickan kom ifran sin älsklings mote, op.37 nº 5
Säv, säv, susa, op.36 nº 4
Svarta rosor, op.36, nº 1

Piotr Ilitch Tchaikovsky
To bïlo ranneyu vesnoy, op.38 nº 2
Zakatilos solntse, op.73 nº 4
Nam zvyozdï krotkiye siyali, op.60 nº 12
Net, tol’ko tot, kto znal, op.6 nº 6
Otchevo?, op.6 nº 5
Den li tsarit?, op.47 nº 6

Francesco Tosti
Entra!
Chitarrata abruzzese
Io ti sento!
Ideale
L’alba separa dalla luce l’ombra

Seguiram-se três extras: um italiano (Tosti?), Preislied dos Meistersingers de Wagner e um pedaço da uma opereta de Lehar.

A pujança de Heppner é tão grande que sempre que inspira sente-se um tremendo vácuo na sala. É precisamente a respiração que dá a Heppner uma enorme capacidade de consumar um fraseado longo, sem soluços.
Heppner tem uma voz enorme, pujante, muito brilhante nos agudos, mas, curiosamente, capaz de cantar no registo piano com elegância.
A afinação poderia ser melhor, Heppner tacteia sistematicamente a afinação correcta, sendo o registo médio o mais complexo para este cantor. Os graves são profundos, abaritonados e saudáveis. Em termos vocais Heppner é um perfeito tenor heróico. O peso e a pujança da voz, a facilidade nos agudos, bem tirados do peito, a possibilidade de puxar pelos harmónicos mais graves, devido à vastidão da caixa toráxica e à dimensão do seu corpo, tornam Heppner num dos poucos tenores aptos para qualquer papel de Wagner, exepto talvez Mime e Logge...

Heppner interpretou de forma notável o alemão de Heine e seus pares nas seis canções de Grieg, elegância, fraseado, sentido dramático, foi superlativo nas duas últimas, Zur Rosenzeit nada mais do que de Johann Wolfgang von Goethe e Ein Traum (um sonho) de Bodenstedt. Heppner fez sonhar nesta última.
Em Sibelius, Heppner foi muito correcto, mas creio que não tão inspirado como no alemão das canções de Grieg.
Em Tchaikovsky Heppner foi demasiado linear, lendo verso a verso as estrofes e quase declamando as frases. Repare-se que utilizou papel neste caso, provavelmente devido ao russo. Creio que aqui se ressentiu desse facto, parecendo muito a declamar as palavras, a ler, em vez de reinterpretar o texto. Heppner apenas se descontraía no final das frases em que retirava os olhos do papel para olhar, olhos nos olhos, o público.
Em Tosti foi triunfante, foi alegre, foi canto puro e prazer total na melodia. Esqueceu a representação da prosódia e cantou alegremente, num italiano algo rudimentar em que trocou mesmo algumas palavras. Mas que importa quando se tem o prazer de ouvir um cantor a sério. Um cantor que até tem bom gosto.

Um piano bem aberto, o de Rutemberg, um gorduxo simpático (em cima do palco estavam uns bons duzentos e cinquenta quilos de músicos), integrou-se muito bem no recital, formando um duo quase perfeito com Heppner. Bom sentido do tempo, ritmo muito certo, deu a certeza da linha musical a Heppner. Timbres muito belos e subtileza no toque e fraseado muito bem coordenado com o cantor. Pena umas notas esmagadas que não tiram lustro à sua actuação. Este pianista, se não faz dieta, qualquer dia não chega ao teclado!

Os extras tiveram a sua apoteose no Preislied de Wagner, notável performance em termos puramente sonoros. Penso que a linha melódica poderia ter sido mais redonda e menos declamada frase a frase, mas é questão de gosto.

Um recital magnífico com muito pouco público. As palmas e os bravos no final de cada canção de Tosti, por um sector do público muito limitado, e perante umas imbecis tentativas de silenciamento por parte dos pseudo bem pensantes, foram um refresco salutar na monotonia cinzenta do público da Gulbenkian...
Não se percebe este público. Em qualquer sala do mundo Heppner teria a casa esgotada. Em Lisboa só o Vengerov e a outra enchem a Fundação para recitais com piano?

A Gulbenkian precisa urgentemente de renovar o público dos concertos, apesar de programas de alto nível o público continua a envelhecer a olhos vistos e a desaparecer a pouco e pouco, sobretudo na música de câmara e recitais. Que tal oferecer bons bilhetes, ou a preços baixos, a escolas, universidades, fazer sessões de preparação para esse público antes dos concertos? Um recital em alemão poderia ter estudantes de alemão, de literatura, de música. Penso que assim se poderia criar um certo vício, um bichino por estes finais de tarde na Gulbenkian que, por exemplo, têm alegrado a minha vida desde desde os meus 10 anos de idade, ou seja desde há quase trinta anos. Sempre que tenho um recital de boa música de câmara ou de canto, sinto o meu dia mais feliz, e mais longo, com a expectativa do repouso, da maravilha da partilha da música num dos melhores locais do mundo. Vale a pena o esforço de ir a um bom concerto.

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