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18.10.04

Renée Fleming na Gulbenkian 

A qualidade do concerto de domingo na Gulbenkian merece algumas notas. Não pretendo fazer crítica sistemática até por razões apontadas noutro post, apenas deixar algumas impressões. Até por pedagogia. Creio que o sucesso foi exagerado e o público demasiado generoso.

O maestro Foster continua com o mesmo casaco, concertos em semanas repetidas e em dias repetidos. Foster enverga uma espécie de parka, ou mesmo um kispo leve que insiste em usar na direcção da orquestra Gulbenkian. Tecido preto, ausência de laço, uma espécie de estilo negligé, que acaba por ser mesmo negligente. Espero que o factor sujidade acabe de de vez com a "moda Outono Inverno Foster", a não ser que tenha vários casacos iguais, mais duas semanas e tudo ficará mais composto... Espero também que o estilo não se aprofunde e se transforme numa espécie de Maisky versão dois, com permanente e fato espacial à Flash Gordon. Foster também anda muito bailarino na sua regência: tivemos direito a sapateado no concerto de ontem, na abertura das Vésperas Sicilianas de Verdi escutámos o tacão maroto do maestro fazendo concorrência ao departamento da percussão. Espera-se que o sindicato dos músicos não levante problemas, mas é espectáculo e o show must go on. O público gosta e aplaude e estamos todos felizes.
A orquestra esteve muito entusiasmada nesta noite de casa cheia, o entusiasmo musical valeu um pouco alguns desacertos e alguma forma de tocar privilegiando os fortíssimos e o género "meia bola e força" em detrimento da subtileza. Mas desta vez estavámos em festa e estes dias também se contagiam aos músicos.
Os violinos têm de ter mais cuidado, desafinações, pizzicatos incertos, entradas pesadas, a entrada do extra de Cilea foi um caos, pareciam gatos a cair em cima de um telhado de vidro a tentarem agarrar-se com as unhas ao mesmo tempo que miavam em desespero de causa. Uma desafinação horrenda, notas trocadas, um ponto mais negro da noite. O concertino Rowlands esteve bem e os seus solos correram, em geral, de forma sensível e com uma bela sonoridade com um belo fraseado, o final da meditação de Tahïs foi menos seguro, mas no balanço uma apresentação muito positiva.
A cantora apresentou-se bem, eu esperava pior, desconfio sempre do marketing e de artistas "Decca". O Händel foi francamente mau, fora de contexto, desapropriado à voz de Fleming, carregado de vibrato e com enormes dificuldades de respiração que arruinaram o final de quase todas as frases, fenómeno que se repetiu em todo o concerto. O estilo da orquestra está demasiado longe do compositor. Era ver as senhoras violoncelistas em vibratos pesadíssimos em todas as notas com mais de um décimo de segundo. Um baixo contínuo de um peso nada barroco. Tudo em esforço. Um ponto contra as escolhas da cantora, que ao pretender cantar tudo arrisca-se a nada cantar.
O Massenet foi razoável, dentro do possível neste compositor. Apenas algumas frases mal terminadas por falta de respiração. Percebeu-se que a dicção e a pronúncia das diversas línguas não são também o forte de Fleming. O Korngold começou por ser o ponto de viragem de Fleming que mostrou boas capacidades de emissão, domínio dos agudos e de sustentação das notas. Strauss em seguida foi muito bom, Cäcillie opus 27, com uma técnica interpretativa de grande nível, emissão a mostrar um belo registo agudo, muito equilibrado, em que os harmónicos se combinam sem predomínio excessivo do corpo ou do metálico. Os médios são muito bonitos e mesmo os sobreagudos têm cor, o que é raríssimo, penso que se trata da presença de harmónicos mais graves uma vez que acima do ré o ouvido humano quase deixa de ouvir os harmónico superiores e a sua produção se reduz significativamente. É esse facto que leva as sopranos a terem, quase todas, um sobreagudo que parece um apito. Não é o caso de Fleming como se percebeu em diversas ocasiões neste recital.
A afinação de Fleming não é perfeita, mas é muito subtil na procura do tom certo, entra geralmente perto da afinação correcta, deixa a voz baixar um pouco e depois sobe, disfarçando eficazmente esta demanda com o vibrato. Todas estas observações são fundamentadas em várias ocasiões do recital, o Strauss foi o ponto mais claro onde se percebeu esta forma de acertar o passo com a música. A noção do tempo de entrada é também inteligente, nunca se notou qualquer tentativa de puxar o tempo para trás, fazendo as cadências da praxe enquanto Foster segurava a nota da orquestra.
A segunda parte começava com Previn e Gershwin, creio que cumpriu bem. O Summertime, no entanto, poderia ter mais força. O belo canto não é o estilo ideal para esta música e a escolha de um repertório muito variado dificultou a mudança aos diferentes estilos. Seguiu-se um Verdi com dificuldades respiratórias, um "al cor" final da primeira estrofe da ária "Mercé, dilette amiche" ficou mesmo a meio por falta de ar. Curiosamente no pior registo da cantora, o grave. A descida terminou em silêncio e faltou som, claramente por falta de ar. As notas mais graves de Verdi, que tão bem definem as grandes cantoras de todos os tempos, o registo quase falado, sentido, muitas vezes raivoso, outras vezes profético ou apologético, evidenciaram os limites da cantora.
Já o "babbino caro" da melhor ópera de Puccini (para mim), Gianni Schicchi, foi praticamente perfeito. Os apianandos muito belos, apenas algumas terminações menos perfeitas e a oscilação na colocação não deram a esta ária a nota vinte. O momento mais alto do recital e que valeria todo o concerto a par do Strauss da primeira parte.
A Canção de Rusalka à Lua, da ópera do mesmo nome de Dvorjak, foi muito razoável, estragada um pouco pela subida final em que a voz de Fleming fugiu no registo médio entrado desafinada nos agudos finais.
Os extras de Cilea e Strauss foram diferentes. Em Cilea, Fleming foi redonda e muito bela no fraseado, em Mörgen de Strauss entrou completamente fora de tom o que estragou imediatamente todos os compassos iniciais do célebre lied de Strauss. Um telemóvel a meio da ária arruinou o resto e acabou com o concerto. O público no final ainda bateu muitas palmas mas a cantora foi-se embora.
Um concerto bom, acabou por não ser o evento histórico que se esperava. O público entrou em delírio e foi para casa feliz. A Gulbenkian está de parabéns pelos nomes sonantes que consegue, marcam a "qualidade" aparente da temporada. Creio que Fleming está demasiado inflacionada para a qualidade que exibe realmente, mas essa discussão iria muito longe.
Creio que o seu principal problema é tentar cantar mais repertório do que consegue, Verdi e Händel claramente a mais neste concerto. O melhor da cantora é a sua inteligência, a sua capacidade de leitura musical, sentido musical e, finalmente, uma voz muito bonita.
O orquestra está a melhorar (é a reentré!) e a tocar com entusiasmo, precisa de melhorar detalhes de afinação, coesão, equilíbrio de sonoridades e paleta dinâmica para atingir um nível semelhante ao final da época anterior.

Henrique Silveira

P.S. Ao contrário do que me propunha, acabei com uma crítica quase geral ao concerto de ontem. Faltou analisar a relação música-texto. A prestação da orquestra na abertura das Bodas de Figaro, e detalhar um pouco mais as referências às obras mais recentes e Massenet...
Em breve continuarei o ciclo "Uma voz por parte em Bach" e ainda o segundo post sobre o Festival de orgão de Lisboa que necessita de uma profunda reflexão sobre a BWV 552. Reflexão que não se consegue fazer em três tempos...

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