<$BlogRSDUrl$>

1.10.04

Ópera na Figueira 

Hoje apenas algumas linhas sobre a ópera de ontem, de Giacomo Puccini, La Bohème, cenas líricas em quatro quadros.

Uma ópera fraca em termos literários, sem qualquer consistência teatral. Uma espécie de palhaçada trágica com uma heroína tuberculosa pelo meio em que Puccini mostra que domina todos os truques para impressionar o público e dar "ópera" ao povo. Melodias belas, algumas cenas vistosas e com efeitos musicais bem elaborados, Puccini popular dominando o seu serviço e alcançando alguma fama. Música conservadora sem grandes elementos de transgressão. Uma obra bem feita nos objectivos a que se destina: um produto de consumo. Um objecto teatral para gosto fácil. Uma obra agradável.

Produção antiga, cenários antigos de Ferruccio Villagrossi, encenação conservadora de Stefano Vizioli, pouco transgressora mas certinha.

Direcção muito titubeante de Josep Caballé-Domenech, francamente inseguro, deixando os cantores solistas, sobretudo o tenorzeco, fazerem o que de pior se pode imaginar em termos de tiques, atrasos para exibição vocal, irregularidade rítmica e fraseado mal preparado e sem a menor noção do texto. Não conseguiu colar nunca as diversas partes, coro, solistas, orquestra, todos procuravam o espaço que o maestro não conseguia atribuir a nenhum. Depois de o ouvir em concerto, e ter gostado, este maestro desiludiu francamente em termos operáticos. Uma interpretação morna e tecnicamente frouxa.

Roberto Iuliano que fez de Rodolfo anda convencido que é um tenor. É a única conclusão que se pode tirar da forma como se pavoneou, se arrastou, como preparou mal os agudos. Como sofreu no dó de peito fazendo sofrer os ouvidos de quem ouvia. Sem noção dramática e com fraseado muito limitado, subindo a afinação quando subia para os agudos e arrastando os tempos quando pretendia mostrar-se, ridículo o esperar pelo termo da frase da orquestra para então terminar, fora de tempo a sua frase. Um tique irritante e de mau gosto. Ficou no ar um rrr de um dir' cantado como "dirrrreee" e terminado depois de toda a orquestra ter acabado a nota de suporte, apenas um exemplo entre muitos. Cantou os agudos sempre em esforço e sem naturalidade. Muito mediano nas capacidades vocais foi outra desilusão.

Tatiana Borodina foi uma Mimì de grande categoria, mas mesmo assim a retardar os tempos para os momentos "altos" terem mais efeito, uma voz extensa e bonita em todos os registos, uma potência suficiente, um vibrato muito projectado, lento e bem dominado, fraseado muito melhor que a do tenorzeco, um domínio da emissão excelente e apianandos de uma delicadeza de porcelana. Um ponto alto da produção.

Os portugueses estiveram muito bem, gostei muito de Dora Rodrigues, Musetta, e achei Luís Rodrigues, Marcello, muito melhor do que tinha ouvido anteriormente, a voz mais fresca e repousada. Apenas o seu fraseado secudido poderia ser mais arredondado, talvez não seja o barítono ideal para o papel, mas esteve bem e teatralmente foi muito bom. Mas sobre estes cantores falarei noutro texto.

O coro esteve muito acima do que se tem ouvido e parece ser o lado mais positivo desta produção. Nota-se outra alma. Claro que não se fazem milagres em poucas semanas e o novo maestro de coro, Andreoli, tem um duríssimo trabalho pela frente, o de restaurar anos de João Paulo Santos à frente do coro da casa. O coro continua a cantar no mediano, mas ter subido tanto desde o nível péssimo, torturante mesmo, de alguns meses atrás é algo de realce, é quase um milagre.

O pior foi o incrível concertino, a desafinação, os solos tocados em excesso de pujança sem a menor noção da relação do seu papel com o contexto da obra e o momento dramático, as entradas antecipadas, a falta de domínio do instrumento, a sonoridade excessiva do seu instrumento nos momentos mais a descoberto onde os colegas tocavam em pianíssimo, tudo isto amplificadíssimo pela acústica ultra-transparente da sala da Figueira da Foz, acústica que noutro músico o faria pensar duas vezes antes da exibição. Este acumular de excessos faz deste instrumentista uma espécie de caricatura em filme de Fellini. Como creio já ter escrito antes: há palhaços do circo que são melhores musicalmente que os momentos histriónicos do concertino. Ridículo e desgastante, é demasiado ultrajante ver a música ser tão maltratada. Será por ignorância? Será por vaidade? Um misto?
O que é certo é que o público não merece sofrer semelhante vexame. Prometo que acenderei uma vela a Santo António no dia em que este senhor for promovido para um lugar inócuo, como pedi tantas vezes pelo antigo maestro de coro (e fui ouvido eu e a crítica toda que durante anos lá foi dizendo que o rei ia nu). Mando rezar uma missa no dia de Sta. Cecília na Igreja dos Mártires quando o primeiro violino da OSP decidir começar a tocar de forma discreta, a fazer o que está escrito, a tocar piano nos pianíssimos, afinado e a compasso. Mas parece-me mais um milagre para S. Judas Tadeu, o patrono das causas impossíveis!

Metais a abafar demasiado os cantores, a sala é muito transparente, se os metais se contiverem a obra ganha mais recorte e ouve-se melhor. As cordas perderam com a liderança tíbia do maestro conjugada com a incapacidade musical do concertino e andaram um pouco à deriva. Muita confusão se passou naquele fosso (e no palco). Como disse antes muita dessa confusão teria sido evitada com uma direcção mais firme.

Uma palavra para o trabalho da equipa do S. Carlos. Levar uma ópera para fora de portas, ter os cenários prontos a tempo e mudados com eficácia. Ter toda a produção fora de portas, desde costureiras até carpinteiros, relações públicas assessores, orquestra, coro, cantores, etc, etc, etc, é um esforço tremendo. Correu tudo sobre rodas em termos organizativos e na cena em si própria. Mesmo com os defeitos apontados esta saída de portas é um hino à música e merece o destaque devido. As críticas, negativas e positivas, que faço são iguais às que faria em Lisboa. Figueira da Foz já tem ópera a sério.

Henrique Silveira

Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?