20.10.04
O deplorável público português
O público, um tema delicado para qualquer crítico oficial.
A tendência geral dos críticos é menosprezar o público, em conversas e na escrita comentam-se os excessos do público, o público que aplaude demais, o público demasiado generoso. Umas vezes o crítico fala da assistência de um concerto como de uma massa de ignorantes. Um bando de acéfalos que vai aos concertos como quem vai a uma espécie de futebol culto. A princípio, quando os membros desse público são novatos, são comedidos, olham em volta para ver como é, batem palmas a medo. Quando se tornam no pior que o público tem, ou seja em pretensos conhecedores que pululam, sobretudo, em concertos de canto e na ópera, quando além de "entendidos" se julgam "habitués" começam a mostrar a massa de que são feitos. Gritam "bravo" a cantoras, "brava" a maestros e orquestras. Passam à categoria de habitués eruditos quando ficam a saber, anos depois de assitir à ópera e aos ditos concertos de canto, que "brava" se diz a uma cantora no singular, "bravo" a um rapaz. Um habitué verdadeiramente conhecedor diz finalmente "bravi" ou "bravos" quando acha que existe uma pluralidade de intérpretes a merecer o estrépido "ribombante" de um urro bem modulado! Um habitué de grande gabarito, uma luminária da arte de se ser habitué sabe até que quando temos várias raparigas a merecer o ululante apelo final se diz "brave". Este último habitué não se nega a acenar com a cabeça durante o concerto e a levantar-se da cadeira ao menor sinal de uma nota sobreaguda em fortíssimo a encerrar qualquer ária. Tenta então gritar "brava" à diva antes dos outros, todos, habitués. Sempre antes do maestro baixar os braços e, sublime consagração, antes de acabarem os últimos acordes da orquestra que podem ser em pianíssimo ou com tambores, tímbales e trombones em três fff (Massenet). Este tipo de habitué gosta muito de se exibir no intervalo emitindo opiniões enrouquecidas (depois da berraria nos aplausos) mais ou menos alarves, que acabam por demonstrar uma total ignorância musical. É evidente que os críticos, membros de uma espécie também cheia de tiques, olham com o mais profundo desdém para este público. O crítico durante o concerto mantém-se hirto, pensa que todo o público o segue com atenção, olha com desprezo para quem bate palmas à sua volta (se está parado), ou então encolhe-se na cadeira com ar infeliz, às vezes levanta-se e vai-se embora sem bater uma palma com um ar tremendamente ofendido. Um crítico muito consagrado, ou que se julga muito consagrado, pode no entanto dirigir a orquestra com ar superior sentado do seu lugar, isto quando não se deixa dormir. O crítico mais convencido pode ainda fazer-se acompanhar de uma partitura que folheia no intervalo com ar entendido e que, depois, serve para se perder durante o concerto. O crítico está sempre em desacordo com o público. Nos intervalos os habitués que o conhecem coibem-se de emitir opiniões de forma demasiado arrogante junto da luminária da crítica e esperam que o crítico dê a sua opinião. O crítico oficial, muitas vezes também não percebe nada do assunto e espera que lhe soprem o que realmente se passou. Outras vezes manda um sorriso sibilino e, qual oráculo, diz uma frase ambígua para despistar. Sempre com o maior desdém pela opinião restante, seja ela de "habitués consagrados", de conhecedores ou mesmo de músicos. O ego do crítico está acima de tudo e de todos. Ele é o detentor da verdade final que mais ninguém domina. Ele tem as chaves do paraíso da crítica, pelo menos assim aparenta mas muitas vezes anda aflito e perdeu as referências ou não sabe mesmo o que dizer ou escrever. No supremo momento da escrita algo lhe há-de ocorrer e ainda tem uns amigos que lhe dizem que o oboé tocou muito bem, ou que a soprano desafinou. Na pior, ou melhor, das hipóteses pode ser que um colega escreva antes e se possa colher alguma inspiração no texto do jornal rival, ou então dizer exactamente o contrário, isto se detestar o colega, geralmente o que acontece. Um crítico odeia sempre o seu colega. É um concorrente, outro detentor da verdade, outro que não sabe fazer nada e se dedica à crítica. Claro que um verdadeiro crítico sabe que nada sabe e nada consegue fazer, mas morreria antes de admitir esse facto básico da teoria crítica moderna! Um conflito de egos em que os músicos também jogam um papel importante, mas fui longe demais, apenas lembro que muitas vezes os próprios músicos intimidam os críticos com cartas e emails (já dominam as novas tecnologias!), ou abordagens directas, o que me leva para o campo dos críticos medrosos que nunca se comprometem mas também nunca têm opinião, no fundo críticos sem vocação, críticos que negam a essência da profissão, a de terem opinião sobre tudo o que sabem e o que não sabem, o crítico medroso apenas finge que tem opinião mas não diz nada, afinal o que os outros críticos dizem em geral.
Sobre os críticos e o público noto o seguinte: o público que enche uma sala para ouvir uma soprano de qualidade a cantar um repertório demasiado ambicioso para as suas capacidades é capaz de deixar a sala a um terço para escutar um dos melhores quartetos de cordas do mundo. Escrevo sobre o quarteto Vermeer que se apresentou na Gulbenkian ontem. Um concerto de nível altíssimo em que se podem discutir opções estéticas, em que se pode falar da falta de potência sonora do segundo violino. Pode-se também referenciar a falta de contraste dinâmico na leitura demasiado plana dos quartetos de Schubert e Mendelssohn (onde faltou algum arrebatamento e pianíssimos ppp). Poderíamos questionar o vibrato excessivo de certas passagens com grande riqueza harmónica em Mendelssohn que poderiam ser mais belas se deixadas a pairar de forma mais limpa da ganga expressiva, tendo ficado empasteladas. Poderíamos comentar a leve descordenação na sustentação da arcada do primeiro violino, ou a leitura não totalmente uniforme, em termos de linguagem global do grupo, com uma viola demasiado exuberante, um primeiro violino com escola russa muito acentuada, um violoncelo a carregar o piano do quarteto em termos de sustentação do conjunto e um segundo violino demasiado discreto. Um concerto em que a fusão não foi tão perfeita como a dissociação individual. Um concerto em que se escutou um excelente quarteto de cordas de Czerny de 1854, com uma linguagem muito clássica em termos de forma musical, já um pouco em desuso ao tempo, mas com belíssimos temas, um tratamento do desenvolvimento rico e uma coda fenomenal no primeiro andamento, um ritmo contagiante nos dois últimos andamentos e um belíssimo andamento lento, muito lírico, muito bem construído, com pontos de inflexão nos locais certos a despertar a novidade e o interesse do ouvinte. Uma surpresa muito boa este quarteto de Czerny que foi estreado, provavelmente, em 2002! Mas estas questões são questões de retórica e de interpretação musical, o que me parece é que o quarteto vermeer tocou o que queria como queria e muito bem, é a sua linguagem, um discurso feito no quase perfeito. Um concerto de nota muito elevada desprezado pelo público face a um concerto de nota apenas boa (mas vulgar) aclamado pelo público e com direito a crítica oficial em todos os jornais importantes! Um concerto normal de um quarteto de cordas, despercebido pelo público e pela crítica e um recital feito por uma cantora "mediática" dois dias antes com direito a antevisões e entrevistas e apelos à claque pelos críticos da praça lusitana nos "jornais de referência"! Afinal o público e os críticos são apenas duas faces da mesma realidade portuguesa. É tudo igual, com responsabilidade diferentes, uns gritam no final, ficam bem dispostos e vão para casa roucos e alegres, outros escrevem nos jornais e andam sempre tristes.
Viva Portugal, viva o Santana Lopes, viva o Pinto da Costa e o Luís Vieira. O público, os críticos, o futebol e os políticos. Somos todos iguais.
Dia 19 de Outubro de 2004, Fundação Gulbenkian quarteto Vermeer, 19h. Um concerto para 17 valores.
Henrique Silveira
P.S. Os músicos estavam bem vestidos, com o seu fato escuro e a sua gravata. Nota para o amigo Vasco Garrido, que aqui mesmo me "elogiou" as críticas de moda relativas às indumentárias dos músicos. Ando a ler Thomas Bernhardt, "irritar é uma arte". Finalmente peço desculpa aos meus amigos críticos pelas generalizações, mas o texto perdia a força se andasse para aí a dizer: excepto Fulano, Sicrano ou Beltrana. Um crítico não pode ter medo dos seus pares, mesmo que sejam amigos, o texto aliás aplica-se a mim próprio. Eu olho com ar de desdém para o público que bate palmas à minha volta! É no fundo, também, uma autocrítica...
A tendência geral dos críticos é menosprezar o público, em conversas e na escrita comentam-se os excessos do público, o público que aplaude demais, o público demasiado generoso. Umas vezes o crítico fala da assistência de um concerto como de uma massa de ignorantes. Um bando de acéfalos que vai aos concertos como quem vai a uma espécie de futebol culto. A princípio, quando os membros desse público são novatos, são comedidos, olham em volta para ver como é, batem palmas a medo. Quando se tornam no pior que o público tem, ou seja em pretensos conhecedores que pululam, sobretudo, em concertos de canto e na ópera, quando além de "entendidos" se julgam "habitués" começam a mostrar a massa de que são feitos. Gritam "bravo" a cantoras, "brava" a maestros e orquestras. Passam à categoria de habitués eruditos quando ficam a saber, anos depois de assitir à ópera e aos ditos concertos de canto, que "brava" se diz a uma cantora no singular, "bravo" a um rapaz. Um habitué verdadeiramente conhecedor diz finalmente "bravi" ou "bravos" quando acha que existe uma pluralidade de intérpretes a merecer o estrépido "ribombante" de um urro bem modulado! Um habitué de grande gabarito, uma luminária da arte de se ser habitué sabe até que quando temos várias raparigas a merecer o ululante apelo final se diz "brave". Este último habitué não se nega a acenar com a cabeça durante o concerto e a levantar-se da cadeira ao menor sinal de uma nota sobreaguda em fortíssimo a encerrar qualquer ária. Tenta então gritar "brava" à diva antes dos outros, todos, habitués. Sempre antes do maestro baixar os braços e, sublime consagração, antes de acabarem os últimos acordes da orquestra que podem ser em pianíssimo ou com tambores, tímbales e trombones em três fff (Massenet). Este tipo de habitué gosta muito de se exibir no intervalo emitindo opiniões enrouquecidas (depois da berraria nos aplausos) mais ou menos alarves, que acabam por demonstrar uma total ignorância musical. É evidente que os críticos, membros de uma espécie também cheia de tiques, olham com o mais profundo desdém para este público. O crítico durante o concerto mantém-se hirto, pensa que todo o público o segue com atenção, olha com desprezo para quem bate palmas à sua volta (se está parado), ou então encolhe-se na cadeira com ar infeliz, às vezes levanta-se e vai-se embora sem bater uma palma com um ar tremendamente ofendido. Um crítico muito consagrado, ou que se julga muito consagrado, pode no entanto dirigir a orquestra com ar superior sentado do seu lugar, isto quando não se deixa dormir. O crítico mais convencido pode ainda fazer-se acompanhar de uma partitura que folheia no intervalo com ar entendido e que, depois, serve para se perder durante o concerto. O crítico está sempre em desacordo com o público. Nos intervalos os habitués que o conhecem coibem-se de emitir opiniões de forma demasiado arrogante junto da luminária da crítica e esperam que o crítico dê a sua opinião. O crítico oficial, muitas vezes também não percebe nada do assunto e espera que lhe soprem o que realmente se passou. Outras vezes manda um sorriso sibilino e, qual oráculo, diz uma frase ambígua para despistar. Sempre com o maior desdém pela opinião restante, seja ela de "habitués consagrados", de conhecedores ou mesmo de músicos. O ego do crítico está acima de tudo e de todos. Ele é o detentor da verdade final que mais ninguém domina. Ele tem as chaves do paraíso da crítica, pelo menos assim aparenta mas muitas vezes anda aflito e perdeu as referências ou não sabe mesmo o que dizer ou escrever. No supremo momento da escrita algo lhe há-de ocorrer e ainda tem uns amigos que lhe dizem que o oboé tocou muito bem, ou que a soprano desafinou. Na pior, ou melhor, das hipóteses pode ser que um colega escreva antes e se possa colher alguma inspiração no texto do jornal rival, ou então dizer exactamente o contrário, isto se detestar o colega, geralmente o que acontece. Um crítico odeia sempre o seu colega. É um concorrente, outro detentor da verdade, outro que não sabe fazer nada e se dedica à crítica. Claro que um verdadeiro crítico sabe que nada sabe e nada consegue fazer, mas morreria antes de admitir esse facto básico da teoria crítica moderna! Um conflito de egos em que os músicos também jogam um papel importante, mas fui longe demais, apenas lembro que muitas vezes os próprios músicos intimidam os críticos com cartas e emails (já dominam as novas tecnologias!), ou abordagens directas, o que me leva para o campo dos críticos medrosos que nunca se comprometem mas também nunca têm opinião, no fundo críticos sem vocação, críticos que negam a essência da profissão, a de terem opinião sobre tudo o que sabem e o que não sabem, o crítico medroso apenas finge que tem opinião mas não diz nada, afinal o que os outros críticos dizem em geral.
Sobre os críticos e o público noto o seguinte: o público que enche uma sala para ouvir uma soprano de qualidade a cantar um repertório demasiado ambicioso para as suas capacidades é capaz de deixar a sala a um terço para escutar um dos melhores quartetos de cordas do mundo. Escrevo sobre o quarteto Vermeer que se apresentou na Gulbenkian ontem. Um concerto de nível altíssimo em que se podem discutir opções estéticas, em que se pode falar da falta de potência sonora do segundo violino. Pode-se também referenciar a falta de contraste dinâmico na leitura demasiado plana dos quartetos de Schubert e Mendelssohn (onde faltou algum arrebatamento e pianíssimos ppp). Poderíamos questionar o vibrato excessivo de certas passagens com grande riqueza harmónica em Mendelssohn que poderiam ser mais belas se deixadas a pairar de forma mais limpa da ganga expressiva, tendo ficado empasteladas. Poderíamos comentar a leve descordenação na sustentação da arcada do primeiro violino, ou a leitura não totalmente uniforme, em termos de linguagem global do grupo, com uma viola demasiado exuberante, um primeiro violino com escola russa muito acentuada, um violoncelo a carregar o piano do quarteto em termos de sustentação do conjunto e um segundo violino demasiado discreto. Um concerto em que a fusão não foi tão perfeita como a dissociação individual. Um concerto em que se escutou um excelente quarteto de cordas de Czerny de 1854, com uma linguagem muito clássica em termos de forma musical, já um pouco em desuso ao tempo, mas com belíssimos temas, um tratamento do desenvolvimento rico e uma coda fenomenal no primeiro andamento, um ritmo contagiante nos dois últimos andamentos e um belíssimo andamento lento, muito lírico, muito bem construído, com pontos de inflexão nos locais certos a despertar a novidade e o interesse do ouvinte. Uma surpresa muito boa este quarteto de Czerny que foi estreado, provavelmente, em 2002! Mas estas questões são questões de retórica e de interpretação musical, o que me parece é que o quarteto vermeer tocou o que queria como queria e muito bem, é a sua linguagem, um discurso feito no quase perfeito. Um concerto de nota muito elevada desprezado pelo público face a um concerto de nota apenas boa (mas vulgar) aclamado pelo público e com direito a crítica oficial em todos os jornais importantes! Um concerto normal de um quarteto de cordas, despercebido pelo público e pela crítica e um recital feito por uma cantora "mediática" dois dias antes com direito a antevisões e entrevistas e apelos à claque pelos críticos da praça lusitana nos "jornais de referência"! Afinal o público e os críticos são apenas duas faces da mesma realidade portuguesa. É tudo igual, com responsabilidade diferentes, uns gritam no final, ficam bem dispostos e vão para casa roucos e alegres, outros escrevem nos jornais e andam sempre tristes.
Viva Portugal, viva o Santana Lopes, viva o Pinto da Costa e o Luís Vieira. O público, os críticos, o futebol e os políticos. Somos todos iguais.
Dia 19 de Outubro de 2004, Fundação Gulbenkian quarteto Vermeer, 19h. Um concerto para 17 valores.
Henrique Silveira
P.S. Os músicos estavam bem vestidos, com o seu fato escuro e a sua gravata. Nota para o amigo Vasco Garrido, que aqui mesmo me "elogiou" as críticas de moda relativas às indumentárias dos músicos. Ando a ler Thomas Bernhardt, "irritar é uma arte". Finalmente peço desculpa aos meus amigos críticos pelas generalizações, mas o texto perdia a força se andasse para aí a dizer: excepto Fulano, Sicrano ou Beltrana. Um crítico não pode ter medo dos seus pares, mesmo que sejam amigos, o texto aliás aplica-se a mim próprio. Eu olho com ar de desdém para o público que bate palmas à minha volta! É no fundo, também, uma autocrítica...
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