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26.10.04

O crítico que é fã 

Tal como um árbitro que inicia um jogo a favorecer uma equipa, tal como um juiz que é amigo de uma das partes, o crítico que é fã de um determinado intérprete é a negação total da crítica. De visão totalmente tapada pela sua devoção ao intérprete, ao artista, o "crítico fã" não critica, não aponta linhas de guia para o ouvinte, não relativiza as interpretações. A obra de arte vista sem olhar crítico passa a ser um mero altar onde o "crítico fã" expõe as suas devoções, mostra as suas fraquezas.
Não acho mal que existam "críticos fãs" ou fãs que criticam. Fãs antes de serem críticos ou mesmo críticos que são fãs. Eu sou fã de Brendel, adoro Brendel, penso que Brendel é o modelo de pianista supremo, um artista, um esteta, moderado e contido, lê de forma intelectual as obras, sem esquecer a poesia. Valoriza a obra. Valoriza o compositor, no fundo o verdadeiro génio por detrás do intérprete. Isso não me impediu de ouvir Brendel, no seu último concerto entre nós, com alguma dose de cepticismo, com os sentidos bem despertos, com a cabeça. Não sei se consegui, mas relativizei. Comigo os vintes estão reservados aos deuses, não aos mortais. Por isso quando leio uma crítica de um crítico fã só me posso rir e dizer de mim para mim: Isto não é crítica isto é uma declaração de fé. Note-se que sou fã de Brendel, mas evito que essa devoção se propague aos textos. Mesmo quando escuto Brendel em Lisboa, ou noutro sítio qualquer, que o tenho ouvido noutros locais. Mesmo em Viena ou numa aldeia perdida do Tirol do Sul. Um crítico que é fã não critica, exibe o seu amor. E nota-se que Brendel é um grande pianista, um dos maiores mesmo. Eu até gosto mesmo muito de Brendel, mas mesmo assim critico Brendel. Não me venham dizer que um crítico que é fã pode ser crítico, eu próprio, mesmo quando critico Brendel, continuo a tentar ser crítico. Creio que não consigo sê-lo, confesso isso de mim para mim. Mas um crítico que é fã, e poderia dar exemplos, muitos mesmo, é melhor mas não muito melhor que um crítico que tem uma pedra no sapato. Ou no rim. Um crítico que tem uma pedra no sapato é, no entanto, muito pior que um crítico que é fã, mesmo o crítico que é fã de uma cantora que é o pior exemplo de fã que conheço, crítico ou não. Como é possível ser o primeiro um pouco melhor que o outro, quando o outro é muito pior que o primeiro? Claro que é possível, basta começar a pensar. Mas o segundo é também muito melhor que o primeiro. Serão iguais ou totalmente diferentes, sempre um pior que o outro até ao infinito, de facto iguais... Posso mesmo dizer que gostando muito de Brendel, detesto Vengerov. E porquê? Porque quando ouvi Vengerov o achei muito exibicionista e com mau gosto. Passei a detestar Vengerov. Quando ouvi Vengerov pela segunda vez estava com uma pedra no sapato relativamente a Vengerov. E porquê? Porque tinha achado as histórias de Vengerov lamentáveis, o vibrato excessivo, a exibição de talento desnecessãria à economia das obras. Lamentável mesmo. Mas isso fará de mim um ouvinte com pedra no sapato? Não sei. Só sei que um crítico que é fá não pode criticar, pode apenas elogiar. E isso é mau, mesmo que se goste muito de Brendel, ou não, ou de Boulez. Mas isso leva-nos por outro caminho, sempre que se fala de Boulez fala-se de transparência. Não é uma crítica, é um esteriótipo. Todo o crítico, seja ele fã ou com pedra no sapato, ou mesmo um crítico que não esteja em nenhuma das categorias acima, ou ao lado, não deixa de elogiar a transparência de Boulez. Mesmo os fãs de Boulez, ou críticos que detestam Boulez, conheço vários, mesmo mais dos que os exemplos de críticos que são fãs e poderia dar mesmo muitos exemplos. Lamentável mesmo. Artigos que têm saído na imprensa recente, na lamentável imprensa portuguesa. Nesses jornais ditos de referência, que se encontram em quiosques, jornais fáceis de encontrar em qualquer lugar, jornais de fim de semana e mesmo diários, jornais onde escrevem críticos que são fãs, ou que têm pedras no sapato, ou nos rins, ou mesmo no cérebro, como o célebre crítico que critica tudo, ou mesmo o crítico que sempre que critica algo fora da sua área, que são todas, diz que é sociólogo. Enfim, o crítico que é fã é um chato, enche páginas e páginas de jornais com críticas que não são críticas mas que são elogios. Émulos é o que eles são todos, uns dos outros e todos de nenhuns e deles próprios, porque os críticos que são fãs, e eu sou fã de Brendel, não são fãs coisa nenhuma, são fãs deles próprios. Repare-se que sou fã de Brendel embora o critique severamente por grunhir em concerto. Mas um crítico que é fã não critica, elogia-se a si, à sua projecção no alvo da sua idolatria. É assim o crítico que é fã, ou que tem pedras nos dois sapatos, ou mesmo num só, nos rins ou na cabeça. Repito-me, mas não tanto como os críticos que são fãs, que a cantora é muito boa, e bonita, que os dedos do pianista são fantásticos e toca muito bem e deu uma lição e têm muito bom gosto e são bons, porque são bons, são mesmo muito bons, e vestem bem, e são simpáticos, mesmo que sejam muito simpáticos ou antipáticos, são bons, muito bons mesmo, e fica aqui o registo, são bons, para que se diga que não se disse que eram realmente bons, olímpicos, superlativos e bons, cantam muito bem e tocam melhor, são exigentes consigo e têm uma grande técnica, são artistas de grande nível, são realmente bons, e gostamos imenso deles, quem não gosta é mau, mesmo muito mau que eles são realmente muito bons, e o concerto foi extraordinário e bom, realmente bom, excelente, e o público delirou com o excelente e bom que eles eram, divinos de bons e excelentes e superlativos e óptimos, bons artistas, eles são capazes de tudo na perfeição da sua arte boa e pura e são filiados em correntes estéticas muito profundas, descendem directamente do rei David, de Moisés, de Zeus e são filhos de Prometeu, as musas empalidecem ao escutá-los, são bons, bons, muito bons, realmente bons, fantásticos, divinais, nós ficámos rendidos, nós os grandes críticos que somos fãs destes magníficos intérpretes excelentes, radicalmente bons, porreiros, elegantes e bons, bons, mesmo super bons, excelentes, óptimos, chatos de bons, realmente apocalípticos de excelentes e hiper super magnificentes dizem-nos os magnos e magníloquos críticos com magniloquência, sobre humanos, lindos, belíssimos eles e tudo o que fazem, excelentes, gentis e bons, Orpheu dorme nos seus braços embalado com os eflúvios da sua excelsa e onírica arte boa, o gosto deles é a pedra essencial de qualquer ser humano digno desse nome e todos os outros, a verdadeira pedra filosofal, a quimera, os que não gostam estão excluídos do paraíso da bondade da verdadeira arte, párias do verdadeiro sentido do belo, labregos afastados da suprema arte dos intérpretes dos quais somos fãs, artistas excelentes e bons... e poderia continuar a repetir o que um crítico que é fã poderia dizer e poderia escrever nas páginas infinitas do seu infinito jornal onde poderia tecer laudas e mais laudas, eternas laudas, requiem eternum e etc, etc, etc... Mesmo assim prefiro um crítico que é fã, porque se ama a si e ao objecto do seu elogio, do que um crítico com pedras onde quer que seja, o que não quer dizer que um seja melhor que o outro, ou pior, ou igual. O crítico com pedra no cérebro odeia-se, odeia todos e não se projecta em ninguém e note-se que eu detesto Vengerov. Note-se que adoro o Brendel que grunhe, um grande pianista mas que grunhe, grunhe. Isso fará de mim um crítico que é fã, ou terei pedras algures?


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