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19.7.04

1- Basílica da Estrela  

Não sei se por ali passou qualquer coisa que se possa chamar Deus, como disse Miguel Portas, mas ver ali ombro a ombro deputados de todos os partidos, a emblemática Odete Santos, a Basílica tão cheia que não se entrava na nave e cá fora tanta gente a despedir-se, palavras de saudade e eu a perguntar a uma deputada será que existem pessoas para substituir uma mulher como esta? E ela a dizer-me: mas onde?

2- “Aquilo de que faço parte é uma coisa que há-de vir e isso é para mim suficiente”

Esta frase que tirei do DNA e da última entrevista de Maria de Lurdes Pintasilgo comove-me porque está lá muito do que é ser visionário de outra humanidade e visionário de acção (como Cristo, Gandhi, Luther King), resistindo a depor fé e optimismo: “ faço parte de uma coisa que há-de vir”. Mas, sobretudo, comove porque está lá tudo do que é ser mulher: “ e isso é para mim suficiente”. O sacrifício, adiar-se, oferecer às cinzas a própria vida, pedir pouco, bastar-se com integrar o ciclo do tempo, comprometer-se com as gerações que virão, isso é coisa de mulheres, coisa que elas aprendem a fazer.
Ser visionária foi, como disse a Clara Ferreira Alves na última Pluma Caprichosa, arriscar-se a parecer pateta, desbocada, senil ou louca. Mais grave ainda se o visionário é mulher porque é o silêncio que se espera delas, o mutismo que, como disse Pintasilgo, tem sempre algo de violento e, acrescento, violentador.
Ela era uma dessa mulheres que tendo vivido na juventude a primeira fase dos movimentos feministas que reivindicavam toda a igualdade de direitos com os homens ( voto, educação, profissão, controlo da fertilidade) deu voz e corpo a um segundo movimento para o qual era mais importante procurar um modo de viver, pensar, conhecer, sentir próprio das mulheres que não fosse a adesão a um modelo construído no qual elas não participaram. E nos breves 100 dias em que foi Primeira-Ministra ela procurou um modo de estar no poder “feminino” e que não fosse a colagem ao modo tradicional de os homens o usarem.
Para ela, estamos no limiar dos tempos. Um tempo no qual as mulheres ainda não participam plenamente, uma igreja e uma democracia que ainda não germinaram. Uma livre expressão que ainda não se libertou do medo das críticas e da dificuldade na afirmação. Estar consciente da insuficiência do tempo, não é desistir. Tal como afirmar: eu penso, eu discordo- não é afrontar. O consenso é que é pouco elogioso para um nosso adversário. O consenso é que é pobre e mudo. Como ela dizia nessa última entrevista: “gosto de pensar com alguém que diz o contrário do que nós dizemos”. É indispensável o conflito para construirmos a identidade, para dizermos “eu, e depois tu e depois nós”.
E a propósito do seu gosto por discussões, uma querida amiga minha conta-me que a Maria de Lurdes, colega nos tempos do Técnico (IST) do padre João Resina, ambos os melhores alunos, amigos de uma vida até porque, cada um à sua maneira, a dedicou a Deus, entrando muitas vezes em acesa discussão terminavam sempre deste modo: -“Você é que é o mais inteligente!”
-“Não você é que é a mais inteligente!”
-“Não, não, você é que é o mais inteligente”.
A generosidade entre amigos que se congratulavam por o outro lhes ser superior.
É por existirem pessoas assim e que esperaram “uma coisa que há-de vir” que o mundo se torna menos insuportável.
Clara


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