29.6.04
Sokolov o autocrata
Um desabafo: vive-se no século vinte e um, o tempo de Stalin já passou há muito. Isto aqui não é a velha União Soviética. Os Czares estão enterrados ainda há mais tempo. Por outro lado estou farto de "artistas" armados em craques e cheios de manias e, perdoem-me o desabafo, o putativo génio não justifica tudo. Claro que existe a liberdade democrática de se ser acéfalo e estúpido, mas cada um que use essa liberdade como Deus lhe deu. Um concerto, mais de quinhentas pessoas apinhadas numa sala de um palácio antigo, Queluz, portas fechadas, janelas fechadas, cadeiras incómodas e sem condições para 3 horas de concerto. Um "génio" autocrata tinha decidido que essas eram as condições ideias para a recepção de um concerto de música em que seria necessário silêncio, em que seria necessária concentração para se poder escutar a interpretação de obras sublimes, supostamente interpretadas por um intérprete carismático, pensador, genial, transgressor mas fundamentado. Um "pensador" que tinha decidido que 36 graus, humidade elevadíssima, e quinhentas pessoas a respirar o mesmo ar viciado numa noite de final de Junho, juntamente com mais umas centenas de lâmpadas de incandescência, era a melhor forma de apreciar um concerto. Conseguiu ruído de fundo constante, senhoras e cavalheiros a abanarem-se com tudo o que tinham à mão, como leques, programas, folhetos papelotes e o que fosse. Conseguiu pessoas a sentirem-se mal e a terem de sair da sala, conseguiu uma porcaria de concerto, sem capacidade de transmitir qualquer ideia, qualquer sentimento, por falta de condições de audição e de recepção do objecto musical.
Enfim, um predestinado para o piano, num concerto que tinha todos os ingredientes para ser sublime e que teve de facto interpretações com uma técnica irrepreensível, mas demasiados pontapés no piano e em Bach (primeira parte) para se poder considerar um concerto maturado e pensado. Sokolov não é um pensador, diga-se o que se disser, assumo o que digo depois do que assisti ontem, diria mesmo que é um imbecil, ou então é autista. Musicalmente tudo o que faz é óbvio, para quem tem a capacidade técnica que tem, basta ler a partitura de Beethoven e exagerar de forma ostensiva, puxando até ao limite tudo o que vem escrito, sem subtileza, sem elegância, violentamente, excessivamente, perdendo o domínio do objecto filosófico e optando claramente pelo lado do desregramento obsessivo.
Desregrado nos pianíssimos, desregrado na "expressividade", desregrado nos fortíssimos, desregrado no uso do pedal, desregrado no touché agressivo quando quer martelar as ideias apaixonadas e violentas de Beethoven. Não, não é o meu género, já o sabia das gravações, já o tinha ouvido no repertório russo onde é excelente. Mas em Beethoven e Bach não é o profundo pensador que se esperava. Em Chopin, Scarlatti e Couperin, extras em que escolheu peças de recorte, de textura, de claridade mas simples intelectualmente, foi perfeito. Tão perfeito quanto a técnica humana permite. Na opus 111 de Beethoven foi demolidor e destrutivo e em Bach limitou-se a fazer tudo o que Bach não podia imaginar que se escondesse por detrás do que escreveu... Bom? Creio que sim, bom pianista. Na Gulbenkian ou no Centro Cultural Olga Cadaval teria sido um melhor concerto? Certamente. Mas, agora que penso nisso, a postura agressiva de Sokolov perante o público foi útil, revelou com mais clareza a faceta autista do intérprete. Fosse noutro local e os mesmo defeitos lá estariam, menos audíveis, menos visíveis. Mas preciso de mais tempo para pensar, para me distanciar, para relativizar. E, admito, a minha análise pode evoluir, é apenas mais uma achega crítica, uma visão pessoal desse mistério que dá pelo nome de Sokolov.
Fiquei com ideia de que Sokolov é uma espécie de "fenómeno", com uma capacidade de digitação e de coordenação motora incríveis, mas com uma total insensibilidade para a recepção daquilo que produz. Uma espécie de cultor de um ego absoluto, que se sente à vontade para fazer o que quer de tudo aquilo que aborda, neste caso Bach e Beethoven. Insensível. Tal como insensível ao objecto público do concerto, insensível ao lado mais místico da música, a capacidade de comunicar.
O público urrou no fim, parecia a tourada, numa demonstração daquilo que se esperava, com ânsia de uns extras que rentabilizassem um pouco mais o bilhete. Degradante. Se eu não tivesse tido um convite teria certamente de manifestar o meu desagrado. Creio que uns "olés" durante a exibição dos dotes do fenómeno seriam apropriados.
No palácio de Queluz fechado, sem ar, com semelhante ogre não me apanham mais. Ao menos na tourada ainda vendem refrescos enquanto se tortura o animal. Em Queluz penamos enquanto o piano é martirizado... E se queriam crítica ao que se passou fiquem a saber que não valeu a pena, será sempre melhor comprar uns discos.
Faltou oxigénio, faltou ar, faltou música, faltou comunicação.
Enfim, um predestinado para o piano, num concerto que tinha todos os ingredientes para ser sublime e que teve de facto interpretações com uma técnica irrepreensível, mas demasiados pontapés no piano e em Bach (primeira parte) para se poder considerar um concerto maturado e pensado. Sokolov não é um pensador, diga-se o que se disser, assumo o que digo depois do que assisti ontem, diria mesmo que é um imbecil, ou então é autista. Musicalmente tudo o que faz é óbvio, para quem tem a capacidade técnica que tem, basta ler a partitura de Beethoven e exagerar de forma ostensiva, puxando até ao limite tudo o que vem escrito, sem subtileza, sem elegância, violentamente, excessivamente, perdendo o domínio do objecto filosófico e optando claramente pelo lado do desregramento obsessivo.
Desregrado nos pianíssimos, desregrado na "expressividade", desregrado nos fortíssimos, desregrado no uso do pedal, desregrado no touché agressivo quando quer martelar as ideias apaixonadas e violentas de Beethoven. Não, não é o meu género, já o sabia das gravações, já o tinha ouvido no repertório russo onde é excelente. Mas em Beethoven e Bach não é o profundo pensador que se esperava. Em Chopin, Scarlatti e Couperin, extras em que escolheu peças de recorte, de textura, de claridade mas simples intelectualmente, foi perfeito. Tão perfeito quanto a técnica humana permite. Na opus 111 de Beethoven foi demolidor e destrutivo e em Bach limitou-se a fazer tudo o que Bach não podia imaginar que se escondesse por detrás do que escreveu... Bom? Creio que sim, bom pianista. Na Gulbenkian ou no Centro Cultural Olga Cadaval teria sido um melhor concerto? Certamente. Mas, agora que penso nisso, a postura agressiva de Sokolov perante o público foi útil, revelou com mais clareza a faceta autista do intérprete. Fosse noutro local e os mesmo defeitos lá estariam, menos audíveis, menos visíveis. Mas preciso de mais tempo para pensar, para me distanciar, para relativizar. E, admito, a minha análise pode evoluir, é apenas mais uma achega crítica, uma visão pessoal desse mistério que dá pelo nome de Sokolov.
Fiquei com ideia de que Sokolov é uma espécie de "fenómeno", com uma capacidade de digitação e de coordenação motora incríveis, mas com uma total insensibilidade para a recepção daquilo que produz. Uma espécie de cultor de um ego absoluto, que se sente à vontade para fazer o que quer de tudo aquilo que aborda, neste caso Bach e Beethoven. Insensível. Tal como insensível ao objecto público do concerto, insensível ao lado mais místico da música, a capacidade de comunicar.
O público urrou no fim, parecia a tourada, numa demonstração daquilo que se esperava, com ânsia de uns extras que rentabilizassem um pouco mais o bilhete. Degradante. Se eu não tivesse tido um convite teria certamente de manifestar o meu desagrado. Creio que uns "olés" durante a exibição dos dotes do fenómeno seriam apropriados.
No palácio de Queluz fechado, sem ar, com semelhante ogre não me apanham mais. Ao menos na tourada ainda vendem refrescos enquanto se tortura o animal. Em Queluz penamos enquanto o piano é martirizado... E se queriam crítica ao que se passou fiquem a saber que não valeu a pena, será sempre melhor comprar uns discos.
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