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19.6.04

Relativização 

A crítica deve ser sempre exercida criando distância, relativização face ao objecto. A crítica emotiva, sensorial, é a negação de qualquer hipótese de análise racional. Isso não nega, nem contradiz o pricípio dionísiaco da fruição estética, que necessita obrigatoriamente de uma lado emocional profundo sem a qual a experiência vivida será sempre incompleta. Mas o crítico, e somos todos críticos quando apreciamos e gostamos de arte, deve poder abstrair-se, geralmente à posteriori, do lado puramente emotivo. Esta relativização conduz a uma reflexão mais ampla, mais lata do objecto. A uma maior compreensão das obras, a uma pesquisa de contexto e, no fundo, a um enriquecimento interior e a um prazer cada vez maior na fruição artística e cultural.

Sem relativização cai-se no disparate, na patetice bacoca de um elogio acéfalo; com excessiva relativização e pretensa erudição, muitas vezes sem alicerces numa fruição coerente, cai-se numa crítica pretensiosa sem qualquer sentido, pode-se até ser destrutivo sem se ser pedagógico, um dos maiores erros que um "candidato" a crítico pode cometer.
Estes extremos são ilustrados pela última "crítica" de ópera (Stiffelio) que saiu no DN em que se faz um elogio acéfalo e totalmente desregrado da produção e da direcção do teatro de S. Carlos, sem reflexão, sem relativização, sem apontar defeitos e caminhos. No outro extremo temos a "crítica" do eterno candidato a crítico, Augusto Seabra, pomposa, prolixa, confusa na escrita e nas ideias, talvez porque pouco assente em verdadeiros conhecimentos musicais e demasiado em referentes "eruditos" e muita pretensão. Seabra é bom em cinema mas gostava de ser crítico de música. Um equívoco que acaba por ser destrutivo.
No meio estão os críticos que não conseguem criticar porque não sabem se vão errar, não sabem se gostaram ou não, sentem-se inseguros e fogem, como o diabo da cruz, de uma definição, a não ser que o objecto seja inquestionável, ou eles assim o pensem. Exemplo: críticas a "grandes orquestras mundias" em que se elogia invariavelmente qualquer que seja o concerto e o maestro, mesmo quando há defeitos manifestos, v.g. críticas à orquestra do festival de Budapeste, ou críticas de Manuel Pedro Ferreira em geral. Neste caso situo também alguma da crítica que se faz no Expresso, exemplo Festa da Música. Excepção feita a Jorge Calado, crítico de ópera do Expresso, homem cuja erudição, paixão, arrebatamento, conduzem a uma escrita vigorosa e empenhada, segura mesmo quando sabe que é polémico. Fruto de uma fruição emotiva. Sem distanciamento? Talvez, mas com muita relativização, que resulta de leituras intensas, de constantes viagens aos melhores teatros do mundo anos a fio. Aqui a excessiva paixão é compensada pelos riscos que assume e pelo prazer que a sua escrita dá ao leitor.
João Almeida é também exemplo desse entusiasmo, nos seus apontamentos sobre música clássica na rádio, mas com menor erudição que Jorge Calado, é claro que o prazer que põe nas coisas, a alegria e entusiasmo com que arrisca tornam muita agradáveis os seus trabalhos; no entanto não pretendem ser "crítica" no sentido tradicional do termo.
Existem muitos estilos de crítica musical, mas a relativização e o distanciamento, aliadas a uma constante dúvida, a pesquisa constante, e a certeza objectiva dos detalhes técnicos, antes de passar à análise da concepção e do lado artístico, serão sempre os alicerces de qualquer crítica séria. Bem como o entendimento das dificuldades que a criação artística encerra e compreensão pelo lado humano dos artistas. Sem, no entanto, se deixar de ser implacável com faltas de profissionalismo e com fraudes. Mas a essência é a relativização.

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