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11.6.04

Os "anos de prisão" de Verdi 

Segundo um crítico de um jornal diário: "É a última ópera dos anni di galera (anos de prisão) de Verdi, período em que, entre o Nabucco (1842) e o Rigoletto (1851), Verdi escreveu 13 óperas (quase metade da sua produção)."
O leitor incauto fica pois a saber que Verdi passou uns anos na cadeia onde escreveu quase metade da sua produção. De facto, e essa explicação falta, são os anos de sofrimento, de experimentação, de trabalhos incessantes na busca de um estilo a que Verdi, ele próprio, dava o nome de Anni di Galera. Não se assuste o leitor que Verdi não esteve preso nesses anos. Creio que o erro do crítico se deve a uma tradução automática de um texto ou a falta de caracteres para explanar decentemente as ideias. Neste último caso devia abster-se de induzir o leitor em erro. Contaram-me hoje na ópera, entre gargalhadas, que leitores houve que garantiam que Verdi passou uns anos na cadeia uma vez que tinham lido isso no sacrossanto DN!
Por outro lado a pergunta legítima: se Rigoletto é o ponto final destes anos, como pode Stiffelio ser a última das óperas dos "anos de prisão" de Verdi? O artigo citado não explica o paradoxo... Além disso se contarmos Stiffelio temos 14 óperas, e se contarmos com a revisão dos Lombardos (Jerusalem) 15! Se retirarmos Rigoletto e a revisão dos Lombardos temos as tais 13, mas não acaba em Rigoletto, afinal onde ficamos e quantas são as óperas? A "trilogia popular" pertence, ou não, aos "anos de prisão"? Ou só o Rigoletto, o que dá as tais 14 óperas? Confuso? Eu fiquei ao ler o artigo. Será que falta a palavra "exclusivé"? Mas o Nabucco não é dos anni di galera? Todos os musicólogos o incluem neste período, que se segue à depressão pela morte da primeira mulher. Alguém que me explique o teor do artigo citado, que eu não arranjo forma de perceber o que o autor queria dizer!


Verdi acabadinho de sair da "prisa" em 1851!

Mas passemos ao prato de resistência:

11 Junho 20:00h
Teatro Nacional de São Carlos

Stiffelio
Giuseppe Verdi
Melodramma serio em três actos, com libreto de Francesco Maria Piave.

Direcção musical
Donato Renzetti
Encenação, cenografia, figurinos e desenho de luzes
Ulderico Manani

Intérpretes

Stiffelio: Mario Malagnini
Lina: Dimitra Theodossiu
Stankar: Carlo Guelfi
Raffaele: Leonardo Melani
Jorg: Andrea Concetti
Federico: João Miguel Queirós
Dorothea: Isabel Biu

Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro

Produção: Teatro Comunale de Trieste



Cantores: a parte de leão desta produção.
Stiffelio: Mario Malagnini foi notável, pujante, claro, afinado, agudos rutilantes, metálicos. Grande recorte técnico, excelente dicção, bem interpretado, com acento no dramatismo nos pontos chave. Uma voz muito bem apoiada, sempre físico, pés bem assentes no chão, as notas parecem vir todas do peito. Um jovem verdiano nato. Um pouco pior nos graves, mas sempre em grande estilo, bom actor. A voz deveria, opinião pessoal, ser mais escura, mais abaritonada. Mas cada qual tem a voz que Deus lhe deu e Malagnini é um grande cantor e provou-o. Fará um bom Siegfried? Parece-me ter o timbre ideal, este jovem tenor não cantou ainda Wagner, provavelmente nem quer...
O facto de ter começado pelo trombone parece dar-lhe um fôlego e uma capacidade de respiração invejáveis.

Lina: Dimitra Theodossiu. Já esteve no S. Carlos antes. Segundo uma amiga nossa durante o intervalo: "tem grande sentido dramático". Concordo, uma actriz perfeita. A voz é algo àspera nos agudos, é uma voz angulosa, sobretudo a frio, ou seja no início da récita. Mas compensa com grande maestria na interpretação, na colocação. Tem graves de grande intensidade expressiva. Uma grande cantora e uma senhora actriz. Tira partido da voz que tem de uma forma intensa.

Stankar: Carlo Guelfi. Um senhor barítono, bom actor. Uma voz de peito com uma ressonância espantosa. Às vezes um pouco mais de dificuldade na agilidade vocal necessária em Verdi. Superior, claramente, no registo grave, consegue mesmo assim um bom equilíbrio de registos. Interpreta bem em termos musicais. Confiante e seguro de si.

Raffaele: Leonardo Melani. Um bom tenor neste papel. Já antes tinhamos dito que não tem grande potência. Fez um Werther muito razoável anteriormente. É muito jovem, este papel mais pequeno que o de Werther, assenta-lhe muito bem. Inteligente, boa voz de cabeça, actor sério. Também é uma aposta ganha.

Jorg: Andrea Concetti. Um baixo respeitável, muito jovem também, tem um grande caminho e um grande futuro pela frente. Não sei se o papel hierático e hirto de um baixo verdiano de circunstância será o ideal para este jovem cantor, Marcello da Bohème, o Poeta do Turco ou Leporello parecem assentar melhor a Concetti. Ficámos curiosos de o escutar nesse seu repertório. Mas foi bravo neste papel.

Federico: João Miguel Queirós, correcto no pouco que tem para mostrar nesta obra.

Dorothea: Isabel Biu. Demasiado voluntariosa, quis sobressair onde não podia fazê-lo. Consequência: um timbre demasiado gritado para se poder apreciar. Não aprovada. Precisa de ter mais calma.

Orquestra com vivacidade, apostada em despachar a última récita da ópera de forma desempenada. A direcção descontraída e muito musical de Renzetti ajudou. No primeiro acto a desafinação crónica dos violinos. E já agora: os pizzicatos devem ser atacados todos ao mesmo tempo. Pizzicato não quer dizer harpejado! O que se ouviu na abertura foi um descalabro total, uma entrada increditável em que em vez de se ouvirem as notas dos violinos a uma só voz, e de uma só vez, choviam pizzicatos de todos os lados possíveis e imagináveis, em todos os tempos possíveis. De fugir e a fazer prever o pior, mas a coisa foi-se compondo. Nota-se muita insegurança no naipe quando o concertino titular aparece. Nota-se também grande imprecisão nos ataques, reforçada quando o tal concertinho titular pensa que está a controlar a situação! Deve ser do tique que tem de entrar sempre antes do tempo, imaginando que com isso que está a dar um exemplo de confiança ao naipe. De facto está a esborrachar entradas e a lançar a confusão.
Os restantes músicos deviam esquecer as entradas do concertino e concentrarem-se no maestro e na sua própria musicalidade. Bom o solo da abertura, sonoridades muito belas nas madeiras nos momentos mais "bizarros" da orquestração de Verdi. Cordas graves em grande estilo, sonoras, coesas, pizzicatos seguríssimos nos graves a contrastar com os violinos.

O coro: deviam, de uma vez, cantar em vez de berrarem desalmadamente e de forma pouco coesa. Soa feio. No primeiro acto mais uma vez andaram à deriva com cantores a entrar fora de tempo e com problemas de afinação disfarçados pelo número. Os fortíssimos foram de fugir. Quando tentaram cantar mais em piano a coisa foi melhor. O miserere final foi fraquito. Continua a não existir um coro de ópera profissional em Portugal. Maestro de coro precisa-se. Depois de um ano de trabalho aparece o coro completo mais uma vez, a segunda ópera num ano inteiro de temporada. Há que pensar: Afinal o dinheiro que o estado dispende com tão inútil coro é bem gasto?

A encenação foi muito rigorosa, mas a obra teatral é uma nódoa em termos de libreto. Piave aqui nada tem a ver com Da Ponte, ou com os libretos de Rossini. Uma confusão de conceitos, de avanços e recuos, de contradições. Um tema moderno: a questão do adultério, o perdão que acaba por ser concedido pelo marido enganado à mulher adúltera.

Um tema de reconciliação que Verdi ilustra de forma notável em termos melódicos e, pontualmente, em termos de colorido orquestral e harmónico. Aqui e ali uma certa mistura de música de banda, os célebres acompanhamentos fáceis de Verdi em contratempo não deixam de aparecer. A cena final é metida a martelo no contexto da ópera que é finalizada de forma brusca. É como se "Verdi estivesse farto da ópera e quisesse acabar com aquilo depressa". A encenação faz o possível para não destruir o que resta da verosimilhança na obra. É uma encenação conformista, mas cenicamente bem conseguida em termos estéticos, boas marcações e bons efeitos cenográficos. Muito bem idealizada a cena em dois planos em que Lina concede o divórcio e se confessa a Stiffelio/Rodolfo enquanto o pai mata o sedutor. Figurinos sem grande rasgo, distribuição de cores pelos membros do coro irregular e pouco conseguida em termos de estética de conjunto.

Produção muito bem conseguida pelo naipe extraordinário de cantores/actores reunidos. Leitura de Renzetti muito verdiana, muito à "bon vivant". Renzetti, conhecido pelas suas explosões de cólera e pelo seu mau humor furioso. Renzetti que põe o peso da responsabilidade nos músicos, sem exagerar no trabalho de ensaio, mas sabendo exigir quando necessáro. Acabou por dominar todas as pontas: o coro não foi horrendo (o que seria habitual), a orquestra esteve bem (o que é habitual com maestros que a entendem), os cantores estiveram excelentes. Creio que Renzetti é o máximo responsável pela qualidade a que pudemos assistir. Tempos bem escolhidos, oscilações dinâmicas bem doseadas. Competente e musical. Imperfeito? Claro que sim, mas são destas imperfeições que se perdoam, e o tema era o perdão, quando se faz música com M. Creio que, com as matérias primas à disposição, conseguiu o melhor possível.
Pena esta ópera de Verdi não ser o seu melhor, mas para o ano há mais.

A minha opinião pessoal, resposta ao post anterior: Esta ópera talvez fique na história do S. Carlos pelos cantores que estiveram reunidos e pela direcção musical. A obra de Verdi, independemente da sua beleza, não me convenceu: Othello e Falstaff estão a anos luz deste pobre Stiffelio. Mesmo o Trovador, com o seu libreto ridículo, está muitos furos acima.

Henrique Silveira

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