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23.5.04

Um aniversário e um bolo de anos  

23 de Maio de 2004

“Sou um judeu que não é realmente um humanista (a palavra perde o sentido para um leitor, mesmo o menos versado, do Maharal de Praga ou do Gaon de Vilna), mas sou consciente de um judaísmo que me faz responsável pelos outros, o seu guardador – um judaísmo que se define, assim, como uma ética e define esta ética como aquela que é estabelecida quando eu resolvo fazer de mim não o igual mas o refém do meu semelhante e que vejo, sobre o meu “eu”, um “Ele” que me domina das sagradas alturas”.
Bernard-Henri Lévy filósofo, escritor, jornalista e ensaísta francês. Retirado do livro “I Am Jewish: Personal Reflections Inspired by the Last Words of Daniel Pearl”, 2004, extraído de Rua da Judiaria.
Neste dia em que a minha amiga Lulu a quem eu chamo de avó faz anos há uma história que ela me contou e que gostaria de aqui contar.

Em 1944, depois de três meses em Auschwitz ela foi deportada para Fallarslebben, um campo de trabalho na Alemanha, numa altura, em que os alemães já estavam a perder a guerra e precisavam de mão de obra barata para esta e outras fábricas de armamento. Mengel seleccionou-a porque, apesar de ter apenas dezassete anos, era alta e larga como a maioria das mulheres dos Balcãs.
Falarslleben não se destinava ao extermínio e as condições de vida eram um bocadinho melhores que em Auschwitz, não chovia nas camaratas, recebia-se mais comida e não fazia tanto frio.
A Lulu trabalhava no final de uma linha de montagem dos V2, colocando o detonador. Um alemão estava lá sempre a vigiar o trabalho, a gritar-lhes “sabotage” enquanto com o polegar fazia o gesto de cortar a garganta.
De uma vez que chegaram ao campo mulheres norueguesas da resistência e como uma se recusasse a fazer as bombas, quando a obrigaram, mutilou-se, cortando o braço numa das máquinas. Mas não era esta a história que eu ia contar.
Ao fim de algum tempo a minha amiga já tinha um grupo de amigas, eram dez. E uma delas ia fazer anos. Então decidiram poupar um pouco de pão que recebiam todos os dias, mais um bocado de geleia para fazer um bolo-surpresa. Passaram um pouco mais de fome do que o costume. Quando chegou o dia de anos, as dez fizeram o bolo de fatias de bolo barradas com geleia umas em cima das outras. Depois a Lulu que tinha jeito de mãos fez umas flores de papel que pintou e pôs em volta do bolo. Puseram o prato do bolo em cima de uma toalha branca no colo de uma das dez. E as mulheres da camarata fizeram uma fila para tirarem uma fatia de bolo, sob o olhar das S.S.
Isto já se passou no fim da guerra. Com os bombardeamentos diários muito próximos da fábrica, os alemães a pressentirem que a guerra estava perdida e elas sabendo um pouco mais dos avanços pelos prisioneiros que iam chegando de dia para dia.
Uma das S. S falava muito com as prisioneiras, a ponto de uma noite em que desceram à cave para se protegerem dos bombardeamentos lhes ter dito: “Vocês ainda hão-de contar isto aos vossos netos, mas eu não”. E é isso que acaba de acontecer.

Clara

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