16.4.04
Feldman e Beckett no S. Carlos
NEITHER
to and fro in shadow from inner to outer shadow
from impenetrable self to impenetrable unself
by way of neither
as between two lit refuges whose doors once
neared gently close, once away turned from
gently part again
beckoned back and forth and turned away
heedless of the way, intent on the one gleam
or the other
unheard footfalls only sound
till at last halt for good, absent for good
from self and other
then no sound
then gently light unfading on that unheeded
neither
unspeakable home
Samuel Beckett
A propósito de Neither de Morton Feldman. Ópera em um acto para soprano e orquestra sobre um texto de Samuel Beckett.
Teatro Nacional de São Carlos: 15 Abril 2004, 20:00h; 16 Abril 2004, 20:00h, 17 Abril 2004, 20:00h.
Direcção musical
Emílio Pomàrico
Instalação
David de Almeida
Desenho de luzes
Pasquale Mari
Soprano
Petra Hoffmann
Orquestra Sinfónica Portuguesa
O prato de resistência do ciclo Feldman, ou "Projecto Feldman" no S. Carlos foi a ópera "Neither" com texto escrito por Beckett para Feldman, o compositor utiliza um texto minimalista cheio de vazios e de silêncios para construir uma ópera/não-ópera em um acto com uma hora de duração.
O texto de Beckett é notável na sua concisão e na sua poesia filosófica, na sua força de pensamento, no seu turbilhão caótico de ideias ditas em pouquíssimas palavras, é absolutamente genial. A música de Feldman, e perdoem-me os indefectíveis de Feldman, é agradável mas muito simples, cheia de fórmulas, que nos trazem uma aparente complexidade que é apenas combinatória e não intrínseca, uma música polar que oscila entre o ser e o não ser, uma música pairante dirão alguns, uma música mínima dirão outros. Porquê mínima? Porque se baseia em módulos melódicos muito simples, em fragmentações rítmicas, em harmonias estáveis, pese embora a aparente complexidade harmónica, mais resultante da combinação de timbres pouco habituais do que de uma real liberdade tonal. Eu encaro a música de Feldman como a parte menor do complexo texto/música. Agradável, boa, nunca genial, nunca transgressora, pelo menos em Neither. Beckett é caótico, nunca polar, nunca linear, o ser e o não ser, não são pólos, são extremos de um raciocínio denso que vagueia algures entre a definição da auto consciência de nós e do mundo e a disrupção dessa mesma consciência, cuja principal consequência será a morte, a luz algures no meio, tal como no texto, tal como na vida...
A parte vocal da obra é terrífica, num registo quase impossível, o soprano paira em notas agudas acima do fá, sol, lá bemol, lá, si, dó e mantém-se acima o tempo todo passeando pelos sobreagudos. É ingrato, quase não se percebe a voz atrás de tal registo. Petra Hoffmann parece ter uma voz dotada para o papel, mas que me pareceu muito magra quando desceu a notas mais graves. A afinação, diabólica aliás, foi perfeita, conseguiu esse feito graças ao diapasão que teve de usar sistematicamente para conseguir manter a cabeça fria nos ataques sem preparação de notas agudas. Sai com nota elevadíssima.
A orquestra esteve de novo em plano muito alto, com defeitos graves apenas no sincronismo dos ataques em simultâneo de alguns sopros, fagotes atenção às entradas a tempo. Os sopros entram quase sempre em conjunto, têm também registos muito incómodos, os clarinetes que o digam. As cordas têm de suportar longuíssimas notas o que deve ser tremendamente fatigante e desconfortável. Mas tenham atenção, o efeito para o ouvinte foi bom senão muito bom. Continuem concentrados e melhorem os ataques que então terão uma performance irrepreensível. Notou-se a afinação dos violinos, o concertino habitual deu folga aos seus colegas e aos ouvidos do público o que muito se agradece.
A direcção musical esteve em plano muito bom, com muita atenção e concentração do maestro Emílio Pomàrico que tirou partido da orquestra, o resultado foi excelente.
A instalação será falada noutro texto, mas creio que será um dos aspectos mais discutíveis da produção, com pontos a favor e pontos contra.
Recomendo vivamente uma ida ao S. Carlos hoje e amanhã, não espere uma ópera convencional, prepare-se para uma experiência enriquecedora e libertadora.
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