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30.3.11

A Luta de Vasco e Nuno 


Ópera Banksters em estreia absoluta no S. Carlos

Henrique Silveira – crítico

Estreia a 18 de Março de 2011 com sala pouco mais de meia. Direcção musical de Lawrence Renes com Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do Teatro Nacional de S. Carlos. Obra do compositor Nuno Côrte-Real com libreto de Vasco Graça Moura.

É célebre a imagem de Jacob lutando durante a noite com um ser, nunca nomeado mas interpretado como um anjo, nas pinturas de Rembrandt, Delacroix ou na gravura de Doré. Essa imagem vai percorrer a encenação de João Botelho: a luta constante entre esse estranho ser, enviado de um paraíso fiscal, Angelino Rigoleto, tenor Musa Nkuna, e o banqueiro Santiago Malpago, barítono Jorge Vaz de Carvalho. O denso texto original de José Régio, Jacob e o Anjo, que se aplicava a D. Afonso VI é desmontado e reconstruído por Graça Moura que cria um libreto em rima de um finíssimo sentido de humor e musicalidade, misturando alguns elementos brejeiros com uma refinada erudição. A obra original de Régio serve de prancha de salto para a história de um banqueiro, visitado por um ser estranho que precipita a acção. O banqueiro é traído pela mulher, Mimi Kitsch, soprano Sara Braga Simões, e pelo Accionista irmão de Santiago, barítono Diogo Oliveira.

A música de Côrte-Real não acompanha o sentido de humor de Vasco Graça Moura, criando-se assim o principal equívoco desta obra. Côrte-Real sabe utilizar a prosódia e o português resulta muito legível mas aquilo que seria, à partida, uma tragicomédia resulta, através da música, num produto muito enfático, continuamente sobrecarregado na orquestração com uso e abuso dos metais, muito denso de graves, muito repetitivo na exploração do material temático e no abuso da marcação pelos tímpanos, quase sempre em fortíssimo, de ritmos assumidamente brutais, como o do “malhão malhão” dos Zés Pereiras, que deixam o auditor num sufoco de tensão que nunca distende, acabando tudo em ambiente de tragédia pura e dura.

A música é sempre ofegante. As citações contínuas de outros trechos musicais, assumidas ou inconscientes, como o cliché dos violoncelos após um momento mais pungente, acabam por perder o efeito e são mais uma máscara que se confunde com a realidade. Os momentos de grande beleza musical banalizam-se pela sua exploração exaustiva onde falta a concisão. A constante divagação estilística de Crte-Real é uma espécie de barroquismo pós-moderno que, de tão assumido, se torna num pastiche que nem sequer consegue ser reaccionário. Após uma muito interessante e fresca Oratória Popular, estreada recentemente em Torres Vedras, esta ópera é, para mim, uma desilusão.

A encenação de Botelho é primorosa, resultando muito visual e evocativa e muito bem coadjuvado por todos os elementos da equipa cénica.

O maestro não conseguiu dar coesão ao todo e o coro foi a habitual abominável colecção de cromos aos gritos. Grande dignidade na representação e canto de Vaz de Carvalho, com bela dicção, e uma muito interessante Sara Braga Simões [teatralmente] com Diogo Oliveira a cumprir bem, Musa Nkuna foi fraco e Chelsey Chill foi excessiva, o resto dos cantores primou por uma fraca mediania.

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o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Nota -Este texto curto de cerca de 3000 caracteres não me satisfaz. As necessidades jornalísticas forçam-me a uma concisão que, apesar da disciplina que impõe, é castradora e deixa a crítica sempre incompleta. Mas são as regras do jogo.

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20.3.11

Orquestra Sinfónica Portuguesa II 

Publicado originalmente no Jornal "O Diabo"

Henrique Silveira – crítico

Continuamos a analisar nesta edição a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Como vimos é uma orquestra fraca que custa ao erário público mais de cinco milhões de euros por ano com os seus cento e dez músicos. Uma orquestra que nada tem evoluído desde a sua fundação. Uma orquestra que oscila na esquizofrenia de ser ao mesmo tempo uma orquestra sinfónica e uma orquestra de ópera e não faz bem nem uma coisa nem outra.

Quais as soluções para este problema crónico? Como escrevemos anteriormente não existe avaliação de desempenho. Os maestros vão e vêm e nunca deixam escrito qual a impressão causada por este ou aquele naipe, ou pelos músicos em particular. Depois das audições para entrar na orquestra nunca mais os músicos têm de provar se estão aptos, os instrumentos são de má qualidade e o som, sobretudo nas cordas, é horrendo. Este estado de coisas, com uma crítica geralmente amorfa e com pouco espaço, leva a que muitos músicos se estejam nas tintas para o estudo e a arte, e a coisa sai como calha e se vão dedicando a outros projectos que lhes vão rendendo proventos extra.

Qual a solução? No meu entender é simples, extinção da orquestra como orquestra “sinfónica” e passagem a “Orquestra Nacional de Ópera”. Redução dos quadros a cinquenta e cinco músicos escolhendo apenas os mais capazes e indemnizando os restantes através de audições com um júri internacional e os músicos a tocar atrás de cortinados. No futuro fazer uma avaliação de desempenho anual, com avaliações pelos maestros e por eventual audição dos músicos. Os avaliados como “insuficiente” por duas vezes teriam de sair da orquestra. Enfim, reformar a orquestra e transformá-la numa organização séria e capaz. Hoje em dia o público está afastado da orquestra pela sua falta de qualidade e esta não presta um grande serviço à comunidade. Deve-se investir o dinheiro poupado, que será da ordem dos três milhões de euros por ano, para fazer uma sala de ensaios e uma sede para a orquestra. Ao longo dos anos o dinheiro poupado permitiria uma muito maior actividade artística do Teatro de S. Carlos.

Para os concertos Portugal conta com orquestras de nível muito superior que cumprem a função de transmitir a música sinfónica ao público, orquestras que têm público fiel e mantém um nível razoável.

Os outros corpos artísticos permanentes sofrem dos mesmo defeitos. O coro do Teatro de S. Carlos é péssimo e os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado na sua maioria já nem sequer dançam. É necessário acabar com este estado de coisas que apenas serve para esbanjar dinheiro aos contribuintes portugueses, nesta época de crise, e criar soluções que permitam salvaguardar os artistas e o público.

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o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Esclarecimento (a sair na edição de 22 de Março de 2011) – Nunca escrevi que a OSP deve ser extinta, o que eu defendo é a extinção do nome “Sinfónica” e a substituição por “Orquestra Nacional de Ópera”. Defendo de facto a redução de quadros mas penso que se devem, e cito, : “...criar soluções que permitam salvaguardar os artistas ...”.

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Orquestra Sinfónica Portuguesa I 

Publicado originalmente no jornal "O Diabo"
Henrique Silveira – crítico

Mega Ferreira, presidente do CCB, anunciou com pompa e circunstância que a obra Daphnis et Chloé de Maurice Ravel seria apresentada nos Dias da Música, esse sucedâneo da Festa da Música, mais pobrezinho que o evento anterior e baseado fundamentalmente nos mesmos princípios. A obra de Ravel é extraordinária, é necessário um grande refinamento da orquestra e do coro.

A obra vai ser entregue à Orquestra Sinfónica Portuguesa, o que me levou a esta reflexão. Pois fique sabendo que a orquestra custa mais de cinco milhões ao Estado por ano, foi fundada em 1993 e nunca se conseguiu afirmar como uma orquestra razoável sequer no plano português sem falar do plano internacional. Desde a sua criação a Orquestra Sinfónica Portuguesa nunca se livrou de alguns problemas que assolaram a sua existência.

Em primeiro lugar a esquizofrenia de ser uma orquestra de ópera e ao mesmo tempo uma orquestra de concertos, os seus 110 elementos nunca se encontram em conjunto para fazer ópera e nos períodos em que há ópera não se fazem concertos. Se em Viena a Filarmónica, associação livre de músicos do teatro de ópera, se reúne nos seus tempos livres para ensaiar e fazer concertos aos Domingos, com uma carga enorme de trabalho que conjuga mais de 300 noites de ópera com dezenas de concertos, a sinfónica portuguesa terá cinquenta noites de ópera e uma vintena de concertos anuais, com uma produtividade baixíssima. No entanto os seus padrões de qualidade são tão baixos que seria impossível uma maior produção, acresce a isso que a orquestra portuguesa não consegue fixar repertório devido o número ínfimo de vezes que se apresenta em público.

Em segundo lugar esta orquestra tem sido desprezada pelo poder político e por todas as tutelas, sem excepção, desde a sua criação. Não tem uma sala de concertos própria, o que a par da sua falta de qualidade, tem contribuído para um total desfasamento do público. Por outro lado não tem salas de ensaio, estudo, biblioteca, ou gabinetes de trabalho e estúdios para os músicos desenvolverem as suas actividades relacionadas com a orquestra e paralelas e nem sequer espaços de arrumações dignos desse nome têm para guardar instrumentos que podem ser volumosos. Andam com a casa à costas ensaiando onde calha, muitas vezes no impróprio Salão Nobre do Teatro de S. Carlos.

Finalmente a orquestra não tem na sua constituição músicos verdadeiramente excepcionais e não há qualquer avaliação de desempenho. Os lugares são de funcionalismo público, seguros e para sempre. Toquem bem ou mal ninguém os repreende. As críticas eram penosas no início mas a coisa está tão estagnada que os críticos já nem se dão ao trabalho de ir aos concertos e nas críticas das ópera andam pela condescendência e evitam referir-se à orquestra.

Desde 1993 nunca a orquestra evoluiu, os críticos internacionais com quem tenho falado dizem-me sempre: que pena, a vossa orquestra nacional é tão fraca... Se no Índice de Desenvolvimento Humano Portugal aparece pelo lugar 30 a nossa orquestra nacional terá à frente, e de longe, mais de trezentas orquestras, o que diz bem do estado de coisas da orquestra pública.
Continua.

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16.3.11

O substituto 

Henrique Silveira - crítico

Abertura da Flauta Mágica de Mozart, Canções de um Viandante de Gustav Mahler e Sinfonia nº 15 de Chostakovich. Orquestra Gulbenkian com direcção de Ainars Rubikis e o barítono Georg Nigl. 24 de Fevereiro, Fundação Gulbenkian. Sala a quatro quintos.


Yakov Kreizberg por motivo de “força maior” não veio dirigir a Orquestra Gulbenkian nesta semana de Fevereiro, foi subtituído pelo jovem Rubikis, nascido em Riga em 1978, terra de grandes músicos e de grande tradição. O concerto iniciou-se por uma esquecível abertura de Mozart, onde a falta de domínio da linguagem mozarteana por parte de maestro e orquestra, e a total trapalhada e desacerto nas entradas constituiram uma entrada displicente. Salvou-se o clarinete, com sonoridade clássica, de Esther Georgie.

Seguiu-se um barítono a cantar Mahler que, apesar de atacar os agudos quase impossíveis da partitura e de uma boa forma de dizer a poesia em alemão, foi atraiçoado por uma má técnica vocal, um stress vocal excessivo nos fortíssimos, em que abusou da gritaria, e um mau domínio do diafragma e da respiração. Foram frequentes as frases acabadas em perda e desafinação quando lhe faltou o fôlego, tudo fruto de má coordenação do diafragma e dos pontos de respiração. Foram demasiados defeitos graves e, apesar de ter começado nos pequenos cantores de Viena, uma má escolha da direcção artística da Gulbenkian.

A segunda parte teve a última sinfonia de Chostakovich com Allegretto, Adagio, Allegretto e Adagio - Allegretto. Apesar de falta de coordenação nas entradas dos metais e da falta de comunicação entre trompas (bem) e trombones (menos bem) sobretudo nos Adagios, apesar de alguns pizzcati descoordenados nas cordas, apesar de entradas fraquinhas nas madeiras agudas e apesar de uma resposta lenta ao gesto do maestro por parte da orquestra, foi uma leitura interessante, embora mais pelo lado doce e subtil do que pelos momentos mais duros e agrestes do ácido humor de Chostakovich. Divertidas citações de Rossini e negras as citações de Wagner que o compositor vai amenizando ao longo do último andamento acabando de forma mágica nas belas e etéreas percussões finais. Muito empenhados todos os solistas com destaque para o violoncelo. O maestro esteve empenhado e atento mas o seu gesto nem sempre foi eficaz na comunicação com os músicos.

O final da obra foi belíssimo, Estaline já estava morto e Chostakovich pode despedir-se deste mundo sem peias estéticas, caminhando para as estrelas.

Orquestra: a melhorar a atenção e coesão nas entradas em andamentos lentos e o aprumo patente na falta de verniz nos sapatos que já mereciam uma visita ao sapateiro.

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10.3.11

Viva a luta 

Homens da Luta: o festival português e o internacional já são uma bandalheira. Ganharam estes que vão para o gozo em vez de uns outros quaisquer que acreditam naquilo. Acho uma desconstrução pobre mas ao menos é uma desconstrução.

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1+1=1 

Henrique Silveira – crítico

O Teatro Nacional de S. Carlos levou à cena mais uma produção, desta feita reuniu a Gianni Schicchi de Puccini a experiência operática Blue Monday de Gershwin. Assistimos a 17 de Fevereiro com a casa quase cheia. Dirigiu Martin André, director artístico do Teatro à frente da OSP. Parece que o grande elo de ligação era o facto de as duas óperas terem sido estreadas em Nova Iorque! Note-se que o Gianni se integra num ciclo de três óperas curtas juntamente com Suor Angelica e Il Tabarro.

Começou-se pela experiência de Gershwin, Blue Monday, produto híbrido de vinte e cinco minutos, nem carne nem peixe, nem jazz, nem blues, nem musical, nem ópera, numa história que pretendia parodiar a ópera verista e que acaba por se tornar num episódio mau de “soap opera” em triângulo em que nem sequer existe intrigalhada. Presentes: Tom o cantor por um João Merino com inglês de Sacavém, a mocinha, Vi por Laura Giordano, que mata o rapaz, o jogador Joe por Mário João Alves, por julgar que este recebeu um telegrama de uma outra mulher que, afinal, era apenas a notícia de que a sua mãe tinha morrido, isto perante os assistentes Mike, dono do café onde se passa a acção por Nuno Dias, e Sam, o faz tudo, por João de Oliveira.

Fracasso claro de Gershwin mais por causa de uma história pobre e teatro deficiente do que pela música que não serve qualquer propósito dramático. Fracasso que mais uma vez se estendeu a esta récita onde Martin André não conseguiu dar um cheirinho de blues e a orquestra esteve monótona e os cantores também se limitaram a cantar as notas e não “o que está entre estas” como disse o maestro numa entrevista.

Já o Gianni Schicchi, foi interpretado com mais entrega pelos cantores, sendo o titular Yanni Yannissis e sua fillha Lauretta por Laura Giordano os mais cotados, cumprindo de forma agradável o papel. A família florentina que se debate pela herança do velho Buoso Donati a quem velam, Maria Luísa de Freitas, Carlos Guilherme, Ana Paula Russo, Miguel Neves, João de Oliveira, Nuno Dias, Jorge Martins, Luisa Francesconi, Simeon Dimitrov, Rui Baeta, Christian Luján e João Rosa estiveram razoáveis com um ligeiro destaque para o sobrinho Leonardo Capalbo. Martin André mais uma vez dirigiu sem grande brilho todo o conjunto mas de forma mais equilibrada do que na ópera de Gershwin e a orquestra, apesar do som miserável dos violinos, cumpriu.

A encenação a cargo de André E. Teodósio foi inapta na direcção de actores em Gershwin, onde os actores cantores andavam à deriva no palco, e mais interessante nas marcações em Puccini onde sublinharam bem o sentido da comédia e do teatro de Puccini. E, se quem tinha visto a desastrosa encenação de “Um Outro Fim” de um barroquismo pós-moderno confusionista, que o encenador coloca numa perspectiva preparatória desta encenação, vai encontrar aqui em Blue Monday e em Schicchi um convencionalismo total. Dá a ideia que o S. Carlos e os estereótipos referidos pelo encenador em diversas entrevistas, como aquele dos casacos de pele do intervalo, o intimidaram e o impediram de se tornar o Schlingensief tuga. É pena, pois é necessário um verdadeiro subversivo em S. Carlos. Sobra a ideia do carro funerário, que desvenda o mistério antes do tempo em Gershwin e é redundante em Puccini. A grande ideia é o carro funerário? E daí?...

Blue Monday – o

Gianni Schicchi – **

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Sofia – A Hora da Alma 

Henrique Silveira – crítico

Sofia Gubaidolina, a grande compositora russa nascida em 1931 na cidade tártara de Chistopol, esteve em Lisboa. O programa da sua visita foi preparado por Filipe Pinto Ribeiro, pianista que estudou em Moscovo e profundo conhecedor da música russa fundador do Schostakovich Ensemble, e incluiu quatro concertos, a projecção de um documentário e um encontro com a compositora.
Todos estes eventos tiveram lugar no Centro Cultural de Belém. Em particular assistimos ao “... Para Gubaidulina” um concerto de câmara no dia 9 de Fevereiro no Pequeno Auditório esgotado. Escutámos o Schostakovich Ensemble nas seis bagatelas de Webern, tocadas com precisão e alma.
Já o quinteto de Schostakovich op. 57, teve uma interpretação muito vigorosa, talvez excessivamente pesada, sobretudo no som das cordas, por vezes em desequilíbrio numa tentativa de puxar pelo som, um pouco dentro da escola russa actual de cordas. Penso que teria sido mais interessante uma leitura mais irónica e menos densa.
O prato forte, porque todos esperavamos, era a segunda parte do concerto com abras da compositora russa. Depois do notável exercício sobre a última fuga de Bach, excelente tocada, mais uma vez com precisão e alma, tivemos uma notabilíssima execução do “funânbulo” para piano e violino. Tatiana Samouil esteve notável no violino e Filipe Pinto Ribeiro foi magistral na forma como criou sonoridades sombrias e misteriosas com um copo de água a roçar a cordas do piano e na forma como tocou o final da obra ao teclado. A incisão e o lado obsessivo do violino, estranhamente evocativo, lembraram um quadro de Chagall, simplesmente notável a obra e a execução.
A obra mais exigente veio finalmente com a presença de sete violoncelos em palco, um solista: Nicolas Alstaedt, membro do Schostakovich ensemble e seis convidados: V. Bartikian, R. Reis, J. Lake, T. V. Pereira e M. Kiska. A própria compositora e Filipe Pinto Ribeiro tocaram aquafones, instrumentos com varetas de metal e um ressoador com água accionados por arcos. Faltou precisão aos tutti dos violoncelos mas percebeu-se a notável e etérea construção de Gubaidolina onde o tema do Dies Irae se vai insinuando de forma persistente até à dissolução final. Apesar de algumas pequenas falhas um excelente concerto. Público em delírio. Foi a Hora da Alma.
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Al-Kindi 


Henrique Silveira – crítico
Al-Kindi ensemble com direcção de Julien Weiss, coro Munshiddin e Derviches da Irmandade Qaderi de Aleppo na Síria com direcção do Sheikh Habboush e Coro Bizantino Tropos de Atenas com direcção de Konstantinos Angelidis.
31 de Janeiro, Fundação Gulbenkian. Sala esgotada.
Al-Kindi foi um sábio árabe do século nono de Bagdade que introduziu a filosofia grega no mundo árabe. Um nome que é também a paráfrase de um grande concerto na Gulbenkian reunindo diversos mundos no mesmo palco e tendo como tema Maria mãe de Jesus (considerado um Grande Profeta pelo Islão), que se celebrou num Stabat Mater estilizado entre gregos e árabes.
Um longo concerto com música árabe e bizantina, uma revelação de grande beleza das relações entre a complexa estrutura dos coros bizantinos na sua enorme riqueza modal, notável sobretudo em “Theotoke Parthene” nos oito modos bizantinos, paleta incrível da gama de recursos vocais e musicais da música grega, e o mundo árabe com o extraordinário e famoso Al-Kindi do suíço Weiss, radicado na Turquia e entretanto convertido ao islão, e que reune os melhores intérpretes em flauta, Rebab, Percussão e no canto de Bekir Buyukbas, um autêntico poeta na forma como diz e canta o árabe clássico.
O Sheikh Habboush da irmandade Qaderi (Sheikh quer dizer numa tradução livre: homem sábio ou, de outra forma: ancião) é um homem da mais profunda tradição musical da Síria, mais melódico e doce do que Buyubkas, recriou pela sua voz no nosso imaginário as viagens ao Oriente em que genuínos derviches giram até ao transe místico ao som encantatório dos instrumentos tradicionais, onde pontifica a Cítara de Weiss.
Negativa apenas a ausência do oud de Qadri Dalal (habitual neste projecto) e de um coro bizantino reduzido a metade do seu efectivo. Será que a Gulbenkian para poupar nos cachés apenas nos deu a conhecer metade do projecto ecuménico de Weiss? Ou será que os músicos optaram por viajar em formação reduzida? O que é certo é que o peso sono dos oito bizantinos na sala da Gulbenkian foi insuficiente para o espaço e que o alaúde árabe é indispensável num concerto de música tradicional deste universo sendo a sua ausência lamentável.
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Crédito a vinte anos 



Henrique Silveira – crítico

Sinfonia nº 9, em Ré maior – Gustav Mahler. Orquestra Filarmónica de Los Angeles com direcção de Gustavo Dudamel

22 de Janeiro, Fundação Gulbenkian. Sala esgotada.

Dudamel é um maestro jovem, ainda na casa dos vinte anos, e nesse ponto reside a sua maior força e o seu maior defeito, controlando a partitura de cor, sabendo os pontos chave das entradas, dos tempos e dos lugares, domina a milionária orquestra de Los Angeles, da qual é titular, não se deixando dominar pela mesma. É notável a empatia que os músicos estabelecem com o seu maestro e a forma como respeitam a sua direcção. Tudo gira em torno do seu gesto vigoroso, determinado e perfeito. Dudamel é técnica natural e é arrojo expressivo.

Um fruto do sistema venezuelano, que torna jovens excluídos em músicos, Dudamel acabou por se tornar num produto do “star sistem”, suprema contradição. O excesso, o entusiasmo, a subversão do “clássico tornado rock”, como vem em todas as folhas de programa onde Dudamel aparece, o excesso sonoro e a origem humilde formam uma mistura que deixa os americanos à beira de um ataque de histeria e serve às mil maravilhas a Universal na promoção do seu “produdo”. Felizmente Dudamel é um pouco mais do que isso.

Nesta nona de Mahler, além do virtuosismo técnico e da beleza sonora e qualidade da orquestra, aspectos evidentes, foi óbvia a falta da compreensão profunda do Mahler final, um Mahler sombrio e depressivo que, lido de forma exuberante e linear por Dudamel, foi muitas vezes banal e pouco refinado. Soube por isso a pouco a falta de minúcia no detalhe da metamorfose do belo no horrível, metáfora tão evidente nas trompas que se cruzam do som natural ao som com surdina e atravessam a fronteira do etéreo para o mais horrível sofrimento em poucos segundos. Essa má passagem no primeiro andamento foi o paradigma de Dudamel, superficial, pouco gradual, evidente como um mágico que deixa perceber os truques.

Se somarmos a isto a falta de sentido do sarcasmo e da ironia num Ländler grosseiro, e a falta da sustentação do som nos violinos nas passagens mais expostas nos agudos em pianíssimo, com excesso de stress no som, abusando agressivamente do vibrato em todas as cordas, sobretudo no rondo, acabamos num Mahler técnico superficial. Mahler disse que “a música está para lá das notas” e Dudamel ainda não percebeu bem isso.

Talvez dentro de vinte anos esteja pronto para esta música e isso compreendeu-se no Adagio conclusivo, onde Dudamel tocou a estrela onde Mahler vive. E que belo final onde após o último som morrer a sala esperou um minuto e, milagre único nesta noite até as tosses se calaram, pelo gesto redentor e apaziguador do maestro a fechar o gesto.
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Uma Katia Inclinada 

Versão não cortada - a que saiu no jornal teve de ser amputada por razões de espaço.

Henrique Silveira – crítico

Kátia Kabanová – ópera de Leos Janácek, Teatro Nacional de S. Carlos (TNSC), casa muito fraca com menos de metade da lotação. Dia 14 de Janeiro, 20h30m com meia hora de atraso.
Orquestra Sinfónica Portuguesa com direcção de Julia Jones, coro do TNSC. Katerina Kabanová: Ausryne Stundyte, Tichon: Hans Georg Priese, Marfa Kabanová: Dagmar Peckova, Boris: Arnold Bezuyen, Dikoi: Magnus Baldvinsson, Vánia: Finnur Bjarnason, Várvara: Anna Grevelius substituída em playback por Natascha Petrinsky, ainda com Larissa Savchenko, Mário Redondo, Ana Cosme, Luísa Lucena e João Queirós. Encenação de David Alden, figurinos de Jon Morrel, coreografia/equilibrismo: Maxine Braham e luzes de Adam Silverman. Co-produção com o teatro Wielki-Opera Varsóvia e English National Opera.
Com a direcção musical de Julia Jones tivemos o prazer de poder ver e ouvir Janacek (1854-1928) pela segunda vez em alguns dias após “Da Casa dos Mortos” na Gulbenkian. Desta feita o TNSC apresentou uma verdadeira encenação da obra do compositor moravo estreada em 1921.
A prevista Grevelius, com problemas de saúde, não pode cantar e foi substituída à última hora por Petrinsky, que cantou num camarote adjacente ao palco seguindo a partitura. O atraso de meia hora deveu-se à chegada em cima da récita da cantora, que nem sequer. Petrelius ficou em palco a esbracejar e a abrir a boca a fingir que representava e cantava, mas o efeito era sobretudo cómico: o som vinha de um lugar completamente díspar. No entanto parece ter sido a única solução para não cancelar a récita e evitar ao anémico público presente a devolução do valor dos bilhetes. Saúda-se a solução do problema mas os efeitos teatrais foram comprometidos em todas as cenas em que Várvara intervinha.
A direcção musical de Julia Jones foi atenta às vozes e pode-se dizer que foi notável o esforço da substituta para tentar tão em cima do acontecimento salvar a récita e, apesar da descoordenação inevitável, conseguiu-se um resultado vocal sofrível.
A encenação esteriotipada de Alden contava com um plano inclinadíssimo em palco, parece que o encenador quis dar aos cantores o máximo de desconforto, além de actores e cantores, passámos a ter equilibristas no palco do TNSC, daí, provavelmente, a necessidade do coreógrafo Braham, só com grande prática e treino se pode transformar um cantor de ópera numa espécie de artista de circo, uma vez que as marcações, limitadas pela geometria peculiar do palco ficava limitada ao evitar escorregar e cair dentro do fosso da orquestra. Um dos membros do coro deixou mesmo cair um objecto que tinha na mão e este foi cair em cima dos músicos. É caso para dizer que além do traje de cerimónia faltavam capacetes amarelos aos membros da orquestra. Se a inspecção das condições de trabalho fosse mais rigorosa e tivesse feito uma rusga lá acabava a récita antes do tempo por falta de rede.
A casa dos Kabanov era uma espécie de parede de uma barraca gigante, um mastodonte de madeira, que andava de um lado para o outro em palco criando as diversas atmosferas (des)necessárias.
Depois a ideia de que os russos andam todos de colete e barrete e que dentro e fora de casa andam sempre vestidos de igual parece saída de um filme dos anos trinta e não de uma encenação que não entendeu o âmago da peça de Ostrovski, adaptada por um Janacek que faz verdadeiro teatro e caracteriza os personagens do ponto de vista psicológico de forma notável, uma reflexão sobre as fraquezas humanas, a culpa, o amor, a convenção e a religião. Com Alden tudo é estereótipo, tudo é superficial e resume-se a não cair para dentro da orquestra. Pode-se dizer que se percebe que o encenador é homem de teatro e que tem alguma competência mas que não esteve inspirado.
Como sempre ns últimos tempos a que tenho assistido à OSP, esta esteve francamente mal: excessos de som nos metais, violinos horríveis em termos de beleza sonora, desafinados, sem corpo, desconcentração geral e som mal equilibrado e feio.
O coro, alvíssaras, tem uma intervenção muito breve e no meio da tempestade a coisa passou despercebida.
Salvaram-se algumas vozes, sobretudo as da Stundyte e Peckova. Priese e Bjarnsson cumpriram e o tenor Bezuyen, que conhecemos de Bayreuth, esteve muito fraco nos agudos exigentes mas acabou por cumprir no resto. Baldvinsson foi grosseiro vocalmente e teatralmente e exibiu uma voz cansada e envelhecida.
Mesmo assim o nível acabou por superar o dos tempos da última direcção de Dammann.
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Esa Pekka Salonen em Lisboa 

Henrique Silveira – crítico

Philharmonia Orchestra, Coro Gulbenkian, Attila Fekete, tenor, e Michele Kalmandi, barítono. Direcção de Esa-Pekka Salonen no Coliseu dos Recreios de Lisboa a 13 de Janeiro. Casa a 90%.
Na acústica péssima do Coliseu dos Recreios foram interpretados o Mandarim Maravilhoso e a Cantata Profana de Béla Bartók e a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky. Deve-se dizer que este programa é um tremendo tour de force por páginas da maior dificuldade técnica da história da música. Com armadilhas rítmicas em tempos irregulares, entradas sucessivas dos instrumentos em ritmos alucinantes, todo este programa punha à prova a capacidade de resistência à pressão de maestro e músico em duas horas de concerto.
Se o Mandarim Maravilhoso foi um extraordinário jogo de clareza e transparências nos diversos planos sonoros em que todos os instrumentos brilharam, a Cantata Profana teve muito mais difícil apreensão pelo público. A orquestra acotovelava-se no palco onde celesta, piano, órgão, harpa e diversos altifalantes disputavam o espaço. Os altifalantes devem-se ao facto de na acústica do Coliseu nem o coro conseguir ouvir a orquestra nem a orquestra o coro, criando-se dificuldade de coordenação e comunicação insanáveis. O som do coro parecia vindo do fundo de um poço.
Mas quando se tem Salonen nem tudo está perdido e o maestro finlandês conseguiu estar em todos os pontos essenciais da partitura, com uma atenção aos detalhes, às entradas de vozes e instrumentos, com uma capacidade de comunicação através da minúcia não fabricada ou falsa de um gesto ao mesmo tempo essencial e completo. Creio que esta capacidade de comunicação, uma grande musicalidade e uma capacidade de análise e conhecimento das partituras faz deste maestro uma tremenda força que é capaz nas mais adversas circunstâncias transformar o impossível no belo. Um modelo copiado por seguidores mas quase impossível de seguir na sua eficácia.
Os cantores solistas fizeram o possível por se ouvir no inferno acústico do Coliseu, com algumas reservas em alguns agudos do tenor que saíram partidos.
A Sagração da Primavera foi um coroar perfeito do trabalho de Salonen, os aspectos rítmicos foram realizados de forma superlativa, numa direcção que mais uma vez privilegiou o detalhe, a clareza, a elegância e o equilíbrio em detrimento do lado mais selvagem da partitura.
Os pontos altos foram a clareza e a qualidade sonora geral, trabalhados com grande detalhe, a suavidade e ao mesmo tempo a densidade dos metais, a pujança e energia das cordas. Sublimes os pianíssimos quase inaudíveis da orquestra e em particular dos trompetes.
A orquestra dos tempos de Walter Legge continua a sobreviver com mais ou menos dificuldades, os contratos agora são precários e os músicos nem sequer têm ordenado fixo, mas o brio, a qualidade profissional e a entrega são totais.
Brilhante também a bela exposição sobre a orquestra, um projecto da Philharmonia, patente no Museu do Design de Lisboa. A não perder.
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Da Casa dos Mortos 

Henrique Silveira – crítico

Ópera com música e libreto de Leos Janácek – Segundo o livro de Dostoievski. Fundação Gulbenkian a três quartos no dia 6 de Janeiro. Orquestra Gulbenkian. Coro (masculino) Gulbenkian. Direcção de Esa-Peka Salonen.
Esta última ópera, e obra, de Janacek é um harmonioso encontro de desequilíbrios. Uma orquestração estranha, um coro masculino, apenas uma mulher em nove cantores e um texto traduzido do russo para checo pelo compositor. São sucessões de experiências, narrativas pessoais, episódios e até teatro dentro do teatro, com as peças representadas pelos presos na cadeia siberiana. A experiência da prisão na Sibéria é colocada de forma áspera por vozes cantando no ritmo métrico da linguagem falada e por uma orquestração agreste. Como a obra não foi acabada pelo compositor a partitura sofreu diversas agressões “completantes”. Infelizmente foi uma versão para orquestra alargada e não a ideia original de Janacek que nos foi dada.
Semi-encenada esta versão de concerto teve projecção vídeo e cantores com figurinos estilizados como prisioneiros e guardas russos e movimento cénico em frente da orquestra. O coro acotovelava-se do lado esquerdo do palco e a orquestra vestida com camisas pretas, grande demais para o espaço, dava uma impressão desconfortável de ajuntamento desordenado debaixo de telões de projecção brancos.
A direcção exuberante e muita atenta aos cantores de Esa-Pekka Salonen não foi suficiente para dar coesão ao tecido musical na abertura e primeiro acto, de grande complexidade rítmica, e notaram-se descordenações dentro da orquestra ao nível das entradas de instrumentos e na coesão dos intrumentos com as vozes.
A produção vinha do Festival de Helsínquia dirigido anteriormente por Risto Nieminen, novel director do serviço de música da Gulbenkian. Veio, pois, uma armada nórdica de cantores: Esa Ruuttunen, barítono, com a voz um pouco cansada mas eficaz no alter ego de Dostoievski, Gorjanchikov; Eric Stolossa, tenor, excelente e sensível em Aljeja; Stefan Margita, tenor, impressionante na sua força eslava; Gordon Gietz, tenor, muito consistente; o baixo barítono Pavlo Hunka foi notável na sua expressividade no relato de Chiskov; Hannu Niemelä, Baixo-barítono, esteve em alto nível nos seus desdobramentos de personagens, nove no total; e muito bem os tenores Dan Karlström e Petri Bäkström; muito bela o soprano Anna Danik, num brevíssimo relance de uma prostituta.
A direcção multimédia de Kristiina Helin recorreu ao Nosferatu de Murnau, ao Lot em Sodoma de Watson e ao documentário finlandês O mundo dos Ladrões, com ressonâncias tarkovskianas, sobre uma prisão na ilha de Ognyi. Preferi as projecções de fotografias contemporâneas dos anos da composição por Janacek e a forma como Helin reforçou a importância da figura matriarcal na psique dos prisioneiros. Penso que a utilização dos Nosferatu é um cliché estafado que se deve justificar apenas pela admiração que Nelin nutre pelo cinema de Murnau. O desenho de luzes foi eficaz.
O nível musical foi subindo e as descoordenações iniciais foram passando gradualmente acabando a orquestra e o coro por se adaptarem a pouco e pouco aos gestos vigorosos de Salonen. A leitura foi mesmo assim algo enfática e primária, sublinhando pouco os momentos mais densos do ponto de vista psicológico, no entanto, este encontro de Salonen com a Gulbenkian é um excelente prenúncio para futuras colaborações.
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A Fúria Criadora 

Crítica a CD

Henrique Silveira – crítico

Johann Sebastian Bach – Passio Secundum Johannem, La Chapelle Rhénane com direcção de Benoit Haller. Zig Zag Territoires.
Bach chegou a Leipzig em 1723, é certo que em 1724 dirigiu a sua primeira Paixão, segundo S. João, nesta cidade. Era então um homem maduro, com 38 anos, com um domínio técnico total da sua arte e com uma fúria criativa verdadeiramente notável.
A Paixão segundo S. João terá provavelmente grande parte do seu texto da própria lavra de Bach, seguindo ainda o Evangelho de João. Bach utiliza o recitativo e os coros de forma extremamente viva para nos dar, de forma dramática, a narração da Paixão de Cristo, os coros são o retrato da multidão. Os corais (não confundir com os coros) luteranos e as árias comentam, de forma apaixonada, os eventos que se sucedem. O coro inicial é um fresco notável da Fé de Bach na persistência do Sol grave repetido até à exaustão pelos contrabaixos e pelo órgão gerando uma harmonia de grande complexidade que se renova sistematicamente sobre o tal sol grave, representando a renovação da Fé. O sofrimento de Cristo, os espinhos e aos pregos, são representados nas desconfortáveis notas agudas em oboés e flautas, e pelo fluxo interminável do tempo, em notas ondulantes das cordas, enquanto o coro arrasa pelos gritos de Senhor, Senhor, Nosso Senhor, o teu Nome é glorificado em todos as naçõe. Pela tua Paixão mostraste que és o verdadeiro Filho de Deus, para todos os tempos,e mesmo na maior humilhação foste glorificado!
É uma obra de amor exaltado que Benoit Haller nos traz, e é essa visão é também verdadeiramente o aspecto musical mais impressionante desta gravação que recorda a versão de 1725 com algumas árias para nós desconhecidas nas versões habituais da obra.
As vozes de Nenoit Arnoult em Jesus, Dominik Wörner em Pedro e Pilatos, Tanya Aspelmeier, Salomé Haller, Julien Freymuth, Pascal Bertin, Michael Feyfar, Philippe Froeliger e, sobretudo Julien Prégardien num evangelista tocante de uma voz colorida, jovem e rica, são jovens e vibrantes e fazem um coro de apenas oito vozes, de um brilho e uma força sem par.
A orquestra da Capela Renana com um poderoso órgão, e não um anémico positivo, enriquecida com um contrafagote e duas violas da gamba, dá uma sonoridade belíssima e cheia, com um baixo contínuo de um vigor irreprensível. O coro inicial, sobre o qual toda a obra irradia, é simplesmente arrasador na construção natural de um contraponto que serve apenas uma fianalidade: “Apenas a Glória de Deus”.
Simplesmente brilhante.
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A Invenção da Natureza 

Henrique Silveira – crítico

Concerto da Akademia Für Alte Musik, com Ariadne Daskalakis em violino e a participação do bailarino e coreógrafo basco Juan Esnaola. Grande Auditório da Gulbenkian, sala esgotada.
No programa os Elementos de Rebel (1666-1747) e as Quatro Estações de Vivaldi (1678-1741). Versões coreografadas em que a orquestra participa, sobretudo nas quatro estações.
Unir Rebel a Vivaldi fazia sentido à priori, ambas as obras são motivadas pela Natureza, sendo a obra de Rebel, com uma instrumentação muito mais elaborada incluindo flautas, oboés e percussão, uma verdadeira obra prima da invenção. Desde o caótico aglomerado de notas inicial representando o Caos Inicial, os elementos em Rebel não são apenas a Terra, a Água, o Fogo e o Ar, encontramos também o Amor e, nas danças que compõem a obra, surge também o canto imitativo dos rouxinóis e outros elementos figurativos, como as quedas de água, as montanhas, as florestas e as flores.
Nesta obra tão emblemática Juan Esnaola dançou o Caos, aparecendo em palco com uns esgares horrendos e uns trejeitos de momo, cheguei a interrogar-me se o bailarino estava a tentar parodiar, com evidente mau gosto, a paralisia cerebral. O lado musical foi o elemento mais interessante com a orquestra em grande virtuosismo a dar um colorido verdadeiramente pujante e uma dimensão telúrica da obra extraordinária de Rebel, que algumas desatenções no início, inadmissíveis num agrupamento deste nível, mancharam.
Sem intervalo sucecederam-se as Quatro Estações, obra conhecida e interpretada ad nauseam por tudo o que é ensemble barroco do mundo inteiro, aqui a leitura do coreógrafo continuou a ser literal: os sonetos que servem de mote ao Vivaldi no programa da obra, foram escrupulosamente seguidos, tivemos lareira em palco e patinadores no gelo no Inverno, tivemos caçada com os instrumentos a fingirem de espingarda com folhas espalhadas pelo palco, no Outono. A trovoada e a tempestade de Verão foram particularmente bem conseguidas. Os músicos simularam cortejos, atiraram aviões de papel, tocaram em cima de escadotes, quase toda a orquestra a tocar de cor e todos se envolveram na recriação artística de Esnaola. A solista Ariadne Daskakis tocou e dançou, tocou pendurada de cabeça para baixo, tapada com um lençol, com neve de papel a cair em cima, folhas secas, deitada no chão, sentada, em cima de um escadote. Evidentemente a música saiu a perder, desafinação constante e falta de estabilidade do som foram as notas dominantes. Foi uma visão inovadora das Quatro Estações, que ouvidas até à exaustão anteriormente, aguentam bem estes tratos de polé para se poder encontrar a outra dimensão escondida da obra. Também só faltava tocá-las de pernas para o ar depois de cada grupo ter tentado ser “inovador” na sua abordagem.
Se na primeira obra venceu a música, na segunda venceu a performance. Um espectáculo interessante, que acabou por ser pobre em dança e em música mas que ganhou na soma das partes.
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Horror em Bach 

Seis suites de Bach para violocelo na Gulbenkian
Henrique Silveira - crítico

Jean Guihen Queyras, 43 anos, canadiano residente em Fraça, apresenta-se como aquelas coqueluches típicas de Paris. Isto reflecte-se em discos premiados, em fotos de charme, e na loucura que envolve os seus concertos em França. Toca num violoncelo de 1696, um Gioffredo Cappa, emprestado pela Societé Générale. A peça de arte de Cappa foi “modernizada”: tem um cavalete mais alto, um ângulo muito superior do braço e cordas de aço.
Imagine-se que um quadro de Leonardo não se via de longe, pedia-se ao pintor “Zé dos Bigodes” para lhe avivar as cores! Isto acontece com instrumentos antigos para soarem ao “gosto” moderno, melhora o som...
Queyras deu-nos a 18 de Dezembro um concerto com a integral das suites, 140 minutos de música. A ordem sequencial das suites foi alterada, Queyras tocou na primeira parte as suites 1, 4 e 5 e na segunda parte as suites 2, 3 e 6. É uma escolha acertada pois a suite nº 5 pede a reafinação do instrumento: a corda mais aguda seria aqui baixada um tom, de lá para sol, o que se chama “scordatura”. A recuperação da afinação exige algum tempo de estabilização.
O que nos surpreendeu de início, e se agravou até ao final, foi a fraca qualidade técnica do instrumentista, notas assobiadas e guinchos (violoncelo rachado?), desafinação constante muito evidente nas passagens a duas cordas, pouca fluidez nas passagens mais rápidas, com destaque para uma trágica “courante” na suite nº1 com notas comidas e uma velocidade excessiva.
O ritmo em Queyras é uma noção vaga e subjectiva. Bach por este instrumentista é uma espécie de compositor passível de ser tocado no tempo que se quer em cada compasso, toda a retórica se perde neste pára arranca sacudido e engasgado. Queyras chegou ao extremo de tocar semicolcheias mais lentas do que colcheias num mesmo compasso da sarabade nº 2, transformando o ritmo ternário numa papa rítmica informe. A articulação é sacudida por: passagens de corda imperfeitas que estragam o legato escrito por Bach, v.g. Sarabande da suite nº5; invenção do legato onde Bach não o escreveu. Por outro lado sempre que há saltos para o grave, Queyras perde um tempo infinito, quebrando o discurso. Todo o discurso das danças originais se perdeu.
Queyras não tem um violoncelo de cinco cordas, com uma corda afinada em mi agudo, necessário para a sexta suite. Resolveu vandalizá-la no seu violoncelo de quatro cordas. Tivemos agudos baços, penosos e desafinação horrível, o mote constante deste remate azedo para um concerto miserável. Um extra de segundos de Kurtag, compositor acessível a Queyras, acabou com o tormento.
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Vésperas de Monteverdi no CCB 

Henrique Silveira - crítico

Depois de em 2008 Marco Mencoboni nos ter apresentado umas Vésperas de Monteverdi (1567-1643) na Sé Patriarcal de Lisboa, esta obra rara surge em duas versões diferentes com uma semana de intervalo. É caso para dizer que não há fome que não dê em fartura. Neste caso tivemos Claudio Cavina com a sua “La Venexiana” no grande auditório do Centro Cultural de Belém em Lisboa, a 8 de Dezembro, isto após a interpretação da semana passada na Gulbenkian.
Editadas em 1610, serviam para a celebração da liturgia das Vésperas de Nossa Senhora, incluindo os Salmos habituais da liturgia mariana e ainda “concertos” que Monteverdi intercalou na liturgia habitual com excertos dos Cânticos dos Cânticos e de Isaias, integrando ainda uma sonata sobre o “cantus firmus” Sancta Maria ora pro nobis e culminando num dos dois possíveis Magnificat que escreveu para esta obra. Se nos salmos e Magnificat é geralmente jocundo e jubilatório, nas outras secções é subtil e intimista. Uma obra destinada a impressioar o Papa feita por um Monteverdi de saída da Mântua dos Gonzagas e em demanda de um novo posto. Uma colecção do melhor que teria composto, no capítulo religioso, até então. Infelizmente o Papa não acusou a recepção da obra e Monteverdi acabou por ir para Veneza onde teve um tratamento à altura do seu génio.
Foi esta dualidade que Claudio Cavina, que foi um excelente contratenor mas cuja voz dá sinais evidentes de consaço, não conseguiu atingir. Procurou em demasia o madrigalismo a que está ligado pelo seu currículo mesmo quando a obra exige mais força vital e, sobretudo, uma retórica de pergunta e resposta, de diálogos e de ressonâncias ligadas aos lugar onde a obra foi criada, a Basílica de Santa Bárbara em Mântua, com a disposição de diversas tribunas, para além da do órgão, onde se poderiam alojar quatro dispositivos corais e instrumentais.
Acabou por ser uma interpretação frouxa e monocórdica e onde a superficialidade da leitura de Cavina nunca conseguiu atingir o âmago da partitura. Os responsórios em canto gregoriano foram pouco impressivos e a sua interpretação instável, mas valia a sua eliminação por não adiantarem nada a uma interpretação sem sentido litúrgico. Mais uma vez se procurou uma ideia de “suposta perfeição” intimista mas onde se falhou na direcção pouco consistente de Cavina que acabou por levar a uma sucessão de lugares comuns pouco ensaiados e de fraca coesão musical. Salvou-se a música belíssima do mestre italiano.
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Monteverdi e Bach na Gulbenkian 


Henrique Silveira - crítico

Começo esta nova colaboração no “O Diabo” com duas obras notáveis da história da música, realizadas recentemente nesse outro monumento da cultura portuguesa que é a Fundação Gulbenkian. Não é por acaso que começo com a temporada desta intituição, é sem dúvida a melhor temporada portuguesa e tem prestígio internacional, trazendo a este país o que melhor se faz no campo da música chamada erudita. Escrevo então sobre as Vésperas da Beata Virgem de Caudio Monteverdi, a 29 de novembro, e às Variações Goldberg de Bach, a 1 de Dezembro, ambos no grande auditório da Fundação.
O concerto de 29 contou com o agrupamento instrumental “Musica Fiata” com as vozes da “La Capella Ducale” com o inglês Roland Wilson a dirigir. Foi um concerto interessante (o pior que se pode afirmar numa crítica) em que Claudio Monteverdi foi interpretado de forma cuidada mas demasiado linear, sem exacerbar as paixões contidas na partitura. As dissonâncias e as pausas dramáticas foram sempre obliteradas “à inglesa” num estilo branco, planar, maçador. Alguns momentos de rara beleza, mais por virtude da composição do que pela interpretação, conseguiram fazer-se sentir, isso foi patente no Magnificat final. Entretanto a Sonata sobre Santa Maria foi uma catástrofe rítimica e interpretativa com destaque negativo para o segundo violino e o segundo corneto. As vozes oscilaram entre o medíocre dos segundos tenores e bom do soprano Monika Mauch.
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O concerto de dia 1 foi verdadeiramente extrordinário, András Schiff interpretou as Variações Goldberg ao piano com um sentido notável do tempo, com uma subtileza e uma qualidade tímbrica e uma sensibilidade verdadeiramente tocantes. Afirmou ainda uma qualidade técnica que apenas titubeou um pouco nas passagens em que das mãos se sobrepõem, resultantes da escrita original para um cravo com dois teclados que, no caso do piano, resultam quase impossíveis de resolver. Uma articulação de uma grande beleza e um ímpeto notável coroaram as variações 16 e 30, num plano verdadeiramente superlativo. Schiff nunca utilizou a pedaleira, utilizando apenas o teclado numa paleta quase infinita de recortes.


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