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6.11.09

Götterdämmerung no S. Carlos - breves notas 

Alguns amigos pedem a minha crítica ao Crepúsculo de Wagner no S. Carlos. Tenho hesitado em escrever algo sobre o assunto. A principal razão é que existe um problema lógico inextricável, o que tivémos no S. Carlos não foi o Crepúsculo dos Deuses de Wagner, nem sequer foi uma obra de Wagner. Neste último mês tivémos, sim, o crepúsculo na senilidade de Graham Vick e o afundar num pântano angustiante de uma orquestra. Comento o que assisti ao vivo: A estreia...

De rajada que não quero perder muito tempo: esta produção teve uma cantora razoável em Brünnhilde, Susan Bullock, com um timbre algo feio no registo agudo, um vibrato agressivo nas notas em fortíssimo mas com bom sentido da frase e um Siegfried boçal e grosseiro em Stefan Vinke que, apesar de tudo, conseguiu gritar as notas do papel, ao contrário do que se passou na jornada anterior. O resto foi desinteressante, entre o mediano (por ex.: algumas vozes solistas) e o horrível (por ex.: o coro e outras vozes solistas), e não vale a pena destacar nada…

Graham Vick quer apenas destruir as ideias de Wagner, incapaz de clareza, de clarividência, pondo os personagens a actuar contra a natureza do texto e do seu devir trágico. A Gutrune submissa e inerte transformada numa assassina. O representante do eterno, mesquinho e sempre vivo mal, Alberich, vive agora decadente na senilidade (a mesma senilidade que é obsessão de Vick) é o chamado envelhecimento a velocidade supersónica, ainda na jornada anterior Alberich andava aos pulos, viçoso como uma alface na caverna de Fafner. As observadoras Normas, desprovidas para sempre de poder, preparam bombas no S. Carlos, o que até não seria despropositado. Motoqueiros em ridículas scooters eléctricas são tudo... menos convincentes. A nobre Brünhilde é bombista. O Reno, outro personagem mágico, deixa de existir transformado numa campa infecta. Só esta última questão seria suficiente para quebrar a ideia fecunda do cosmos que Wagner preparou durante 15 horas de música para o apocalipse (quase) final: nos ares refulge o fogo que consome os céus, em oposição às águas do Reno transbordando das margens e que invadem, purificadoras, as terras de Worms...
A ideia do totalitarismo presente na corte de Gunther é interessante mas banal. Os corvos de Wotan, interessante e bela ideia (pensei ao vê-los surgir), é assassinada barbaramente pelos trejeitos a que os desgraçados dos bailarinos foram obrigados pelo "coreógrafo", mais pareciam uns pardalecos tontos uma espécie de gatos-pingados esbracejantes do que os nobres observadores de Wotan, olhos do mais presente dos ausentes, olhos de Wagner afinal. Outra nota saída do bordel do "coreógafo" Ron Howell, citado universalmente pela crítica internacional como um coreógrafo sem ideias e que vive à sombra artística de Graham Vick, é a "dança" das ondinas. Confundir sedução e erotismo com aquilo é o mesmo que chamar de meretrizes a todas as mulheres...
Foi dito que Vick fervilha de ideias, que é um mágico do teatro. Eu pergunto-me: onde estão as ideias de Vick que sejam fecundas? Encontro apenas meros actos gratuitos, sem sentido, sem fluxo, esparsas provocações: um par a dançar danças de salão ao tema da redenção que encerra o Crepúsculo, banalidade que representa o vazio, banalidade pessimista em oposição ao pessimismo mágico, sublime, trágico de uma visão de Wagner da filosofia de Schopenhauer... Fica uma pergunta: qual a lógica disto? Qual o sentido de um grupo de figurantes a correr e a pular durante os mais belos momentos musicais da orquestra? A única resposta é que o que sai do fosso é tão mau que é necessário fazer barulho com os pés dos figurante, distrair e encher o olho do público para que este não perceba a miserável direcção de Letonja e o som horrendo que vai escorrendo, qual fluxo lamacento, de um fosso sem coordenação, sem conjunto, sem propriedades acústicas, sem nexo. Abafar as notas erradas dos trompetes no juramento de Brünnhilde, esconder os graves a entrarem todos descoordenados porque os instrumentos não se conseguem ouvir no fosso, esconder a falta de precisão das entradas dos sopros, esconder os trombones fora de tom da banda de palco quais buzinas desafinadas, esconder o paupérrimo som das cordas, esconder a triste marcha fúnebre, sem pathos, sem impacto, sem chama, mortiça, esconder a visão míope do maestro que não tem qualquer noção do conjunto wagneriano e dirige compasso a compasso, nota a nota, sem sublinhar os motivos condutores, sem construir uma linguagem estética, a medo, é que, infelizmente, não é possível e, quando chegamos ao final, suspiramos de alívio que a tortura acabou ao som de um insuportável e infernal lá bemol (?) agudo de primeiros e segundos (?) violinos, a imagem do sofrimento que termina para músicos e mim próprio mas fica a ecoar como um bicho que se nos entranhou no cérebro e nos causa uma enxaqueca até o dia seguinte. Quando o personagem principal é a orquestra, Vick dixit, fazer Wagner sem orquestra é um absurdo, e como tal não pode existir Wagner. Qualquer crítica a um Götterdämmerung que não é de Wagner mas de Vick é quase um desperdício de tempo e de palavras.

Mas Vick não tem uma única ideia interessante? Claro que tem, e com isto encerro este raciocínio rápido sobre esta produção: tapar o teatro por dentro com painéis plásticos de um cinzento "cor de burro quando foge" é uma boa ideia, o Teatro de S. Carlos está na miséria, miséria artística, miséria musical, miséria no canto, miséria no número de produções e miséria nos números com que nos querem enganar, o cinzento é a cor da lama pútrida da poluição, daquele cinzento nada vive, não é fecundo. O palco virado ao contrário (no lugar da plateia habitual), ideia estimulante pela novidade a princípio, já parece um vício: o vício da destruição do teatro mágico de Wagner tendo como brinde um fosso sem comunicação interna, plano e de tecto baixo, sem espaço para a orquestra de Wagner reduzida em 20 unidades sobre o pretendido pelo compositor. Trocando distância e sonho pelo concreto materialismo brechtiano do teatro a ser feito à nossa frente, encontramos apenas mais um estereótipo de Vick. Uma encenação sem hermenêutica, um vazio de lugares comuns materialistas, um pessimismo do concreto, de pacotilha, um Wagner esquecido. Esgotada a ideia transforma-se numa escravatura. Fica a única ideia genial de Vick, colocar uma escada em cima da orquestra com o maestro bem debaixo da mesma, é óptimo para a comunicação… parece. Esta escada revela o lugar que Vick tem na sua escala para a orquestra de Wagner. Tem a vantagem de colocar a OSP e Letonja no seu verdadeiro lugar: o vão de escada.

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