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26.2.07

Walküre a negação wagneriana 

Chegou-me às mãos o Diário de Notícias de Sábado. Marko Letonja dá uma entevista sucinta mas muito bem conduzida por Bernardo Mariano. Percebi o que me estava a faltar relativamente à audição da estreia. Realmente as cordas foram drasticamente reduzidas.

O pior que soube através da entrevista, a par da lamechice e banalidade de Letonja ao dizer que a obra é patética e emotiva e o mais a quatro, é mesmo o sacrifício irresponsável da música por uma cenografia e encenação que desprezam a partitura wagneriana em toda a sua dimensão. Diz Letonja que segue o Felix Mottl e a edição da Dover, logo a que eu tenho. Se segue essa edição deveria ter constatado que as indicações que lá vêm, e assim se faz em Bayreuth (como Letonja não se cansa de repetir parece que é o seu modelo), são precisamente de 16 primeiros violinos e não de 14, de 16 segundos e não de 12, de 12 violas e violoncelos cada e não de 10 e, finalmente e o pior de tudo, de 8 contrabaixos e não de 5! O número de cordas a menos, relativamente ao indicado, é de 13 instrumentos, uma orquestra de câmara!
Sendo os naipes graves severamente sacrificados, nos divisi a quatro o desequilíbrio é manifesto e, pior, o desequilíbrio global entre sopros e cordas é tremendo. Na plateia, onde me sentei, os desgraçados dos 5 contrabaixos já nem sequer se ouvem.
A construção, de que Letonja fala, a partir dos graves é uma treta, perdoe-se a palavra: é caso para dizer que é apenas quando as tubas entram que se ouvem graves. Quando os sopros reforçam as cordas, como por exemplo os fagotes e clarinete baixo se juntam aos violoncelos, a coisa compõe-se mas não é ideal. Entretanto diz o maestro que as cordas se ouvem muito bem com três ppp. Talvez Letonja as ouça bem no pódio, mas cá atrás ouvem-se os walkie-talkies da produção e um ruído de fundo das máquinas que abafa completamente qualquer hipótese de se ouvirem os tais três ppp.

Pensar que a primeira razão desta reviravolta no palco do S. Carlos era operacional: a orquestra wagneriana não cabia no fosso do teatro!

Finalmente Letonja diz que "Depois - isto pode parecer provocação, até - mas há vários locais na partitura onde a instrumentação se assemelha muito à música de câmara." Não é provocação nenhuma, é uma verdade óbvia e uma banalidade para quem conhece a obra de Wagner. A maior parte da textura é claramente de câmara, e mais, mesmo nos grandes momentos sinfónicos a presença de estruturas camerísticas transparece. Wagner cria tensões e distensões contínuas, sendo que quase todas as distensões são obtidas por efeitos de redução instrumental e de diálogos instrumentais concisos, geralmente surpreendentes nas combinações e cores, na extraordinária simplicidade e engenho em que emprega todo o espectro orquestral ao mesmo tempo que também sabe utilizar as grandes massas e domina com maestria as grandes complexidades orquestrais, sempre doseando os grandes momentos evitando cair no monolitismo que se encontra num compositor menos dotado do que Wagner, como por exemplo Schönberg na sua fase inicial; v.g. Gurrelieder. A criação de tensão em Wagner também não escapa a estas combinações sonoras. Um dos exemplos mais notáveis é a cena da revelação da espada, em que tímbales a solo, cordas graves, trompete baixo e, finalmente, o primeiro trompete constroem um diálogo notável de revelação e descoberta que se distende a meio com uma evocação meditativa de Siegmund e que, de novo, se reacende para culminar com a entrada em anticlímax de Sieglinde que explica tudo e reduz o momento, o que já era óbvio pela música, ao universo das palavras, antes de entrar num novo ponto de grande dramatismo.

Centenas de outros exemplos podem ser apontados, o monólogo de Wotan, que tanto está "contra" toda a orquestra como em pungentes frases completamente a descoberto ou em diálogo com alguns instrumentos, sublinhado aqui e ali por pizzicati ou notas curtas dos sopros, em que a voz, o elemento da orquestra ao qual é permitido falar, estabelece um princípio condutor que transporta o ouvinte espectador a um mundo mágico de evocações, como por exemplo quando surge o tema de Erda, se anuncia o Crepúsculo, se evocam os tratados, ou se prenuncia o fim, entre tantos motivos entrelaçados ou em sucessão. Não é provocação falar de um Wagner de câmara, é uma evidência.

Creio que a direcção peca por não ser arrebatada ou mesmo excessiva, o excesso de paixão nunca é excessivo! Nota-se que Letonja está a jogar à defesa nesta sua primeira Walküre. A orquestra não dá grande segurança, o espaço é muito desconfortável para uma direcção precisa dos cantores, é justificável, mas esta visão também é redutora e empobrecedora. Resta pesar os muitos lados e saber no final se valeu a pena. Ainda é cedo para esse balanço, nem o projecto avançou ainda muito, nem esta Walküre atingiu a sua maturidade musical e teatral.

Letonja afirma, como se de um grande desiderato se tratasse, que não reduziu madeiras e metais! Como se o pudesse fazer, as partes são únicas, cortar nos sopros seria cortar música escrita por Wagner. Pode cortar nas cordas porque na maioria dos casos estão muitos instrumentos a tocar a mesma coisa, não acontece isso nos sopros.
Foi por isso que tivémos seis harpas no Ouro do Reno, é porque nesse drama específico a música de cada harpa está escrita, em linhas individuais, por Wagner. Cortar uma harpa seria destruir o texto musical na sua completude. Na Walküre as harpas dividem-se em dois conjuntos de três harpas, ou em conjuntos menores, mas nunca há mais de duas linhas paralelas, logo vá de cortar um par de harpas. Quando Wagner pretendia as seis, que vêm indicadas na partitura, Letonja põe quatro, apesar do Mottl, apesar de em Bayreuth se fazer com seis, e em Berlim e em Aix e em todo o lado onde se respeita a obra de Wagner. Queixa-se que teve de as mandar tocar mais piano porque estão muito próximas do local de onde dirige, mas aqui também não interessa muito o que o maestro ouve no pódio apenas porque as harpas estão muito próximo das suas orelhas, o que se pretende é um efeito sonoro junto de quem ouve, o público. Se Wagner quer seis harpas devem estar seis. Acrescento que se Letonja as ouviu bem eu não consegui ouvir bem esses instrumentos, nomeadamente na maravilhosa cena da Primavera no primeiro acto.

Fica uma certeza: fazer Wagner com uma orquestra que já não é grande coisa e ainda por cima violentamente amputada do seu efectivo ideal é negar descaradamente o compositor e a sua obra, é destruir o seu ideal sonoro. Há que ser frontal: nestas questões não pode haver compromissos, uma Walküre com uma orquestra desfalcada é uma fraude, é vender gato por lebre.

Outro lado que para mim é revoltante é o facto de em Portugal nunca se fazerem as coisas pela íntegra, há sempre certas razões, há sempre uns burocratas que acham que não se pode fazer como está escrito, por isto e mais aquilo e rebéu-béu-béu, e o espaço é pequeno, e era desconfortável, e era demasiado para as orelhas do maestro ter de ouvir tanto barulho. E não se pode contrariar o Vick que ele é que é o autor do projecto e é o encenador e mais uma série de coisas todas cinzentas e medíocres que se afirmam para justificar o injustificável. E vem um esloveno que nunca dirigiu a Walküre para nos ensinar como deve ser uma orquestra wagneriana e que assim fica muito equilibrado... o mesmo Letonja que assassinou a partitura de Medeia. Ter aspectos de câmara não significa que se faça Wagner com uma orquestra de câmara e a ouvir-se a meio gás.
Que raio de país este de miseráveis meias tintas que nem sequer um Wagner inteiro podemos escutar. Soubesse a maioria do público a que soa um Wagner inteiro e verdadeiro...


P.S. Como poderá o maestro Letonja seguir as indicações da partitura que indica "quatro primeiros contrabaixos" no início do prelúdio e uns compassos mais à frente faz entrar mais quatro, escrevendo "todos os oito contrabaixos" para voltar a retirar quatro contrabaixos mais à frente. Como pode haver uma graduação do peso dos graves se não existe qualquer hipótese de o fazer com apenas cinco instrumentos? Será que primeiro entram os quatro primeiros e depois entra o quinto? Será que ficam todos a tocar, será que entram 3 e depois mais dois? As partes de grande densidade, pathos e energia com os violoncelos e contrabaixos saem desgraçadamente pífias, lembro o tema da rebelião de Siegmund contra Wotan no final do segundo acto sobre o tema da morte: como emprestar força telúrica, drama, angústia? Com um peso orquestral nas cordas graves absolutamente ridículo. Embora tenha ficado num local de acústica muito fraca, parece-me que falta muita massa a esta orquestra enfezada e diminuída nas cordas.

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25.2.07

Walküre - Mais notas curtas 

Porque será que quando os fagotes se juntavam ao naipe dos violoncelos, em passagens que tinham sido abordadas anteriormente apenas por este último naipe, a coisa soava muito menos trapalhona e mais afirmativa? Será que estão os doze violoncelos previstos na partitura no buraco da orquestra? Não creio.
É das poucas vezes que tenho ouvido este naipe em franco desequilíbrio na OSP, desafinações, entradas a medo, passagens muito pouco claras, num naipe que tem de ser de uma segurança notável para transmitir os trechos de sonho que Wagner escreveu como o leitmotiv do amor trágico, por exemplo. Uma situação rara num naipe que costuma ser um dos pontos fortes da orquestra.
Apenas nos solos, e não sei quem os fez porque não consegui ver, o violoncelo foi poético e encantou.

Os contrabaixos mal se ouviam, onde estavam? Quantos eram?
Nota excepcional para o clarinete baixo e os fagotes.

Deixo aqui este ponto que me deixou perplexo, estou como o outro, são coisas da vida.

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Asneiras Wagnerianas II 

No programa da Walküre vem mencionado que as Valquírias são todas filhas de Wotan e Erda. Que são filhas de Wotan é claro, no caso de Erda a questão fia mais fino. A heroína, Brünnhilde, é realmente filha de Erda. Sobre as outras nada é dito, nem na obra nem em qualquer texto, que eu conheça, de Wagner.
Pode-se admitir que talvez sejam filhas de Erda, mas nunca afirmar peremptoriamente que assim é.
Se alguém tiver mais dados sobre o assunto agradecia que mos enviasse.

Quem escreve notas para programas deveria ser mais preciso e usar menos lugares comuns.

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Acústica 

Na estreia da Walküre fiquei na bancada que ocupa o lugar tradicional do palco. A experiência pode ter melhorado marginalmente em relação ao ano passado com uma espécie de tecto de concha acústica que penduraram por cima do palco, mas a acústica naquela posição continua má. A orquestra soa abafadíssima e muito distante e as vozes soam de forma errática. Parece que faltam cordas e os metais pesados soam abafados, será que estão todos lá dentro? As cordas em divisi soaram desastrosas quase sempre por falta de massa sonora e problemas de afinação e coesão. Não creio que a orquestra wagneriana caiba naquele buraco...
Para além disso os cantores passam a maior parte do tempo de costas para a bancada tendencialmente em posições onde se vê o maestro, o que resulta numa qualidade sonora deficientíssima. Wotan na despedida parecia que estava a cantar de dentro da casa de banho da terceira ordem.
Entretanto o pessoal do teatro anda de botas cardadas no sector técnico que fica precisamente por detrás do palco, conversam e last but not the least ouvem-se os walkie-talkies de suas excelências com um volume altíssimo que perturbam de forma muito negativa a audição na bancada de palco. Hoje mais uma bola preta para os serviços da produção do teatro.
A ideia de Vick da democratização do Wagner não resulta, já se provou e volta-se a provar. Os desgraçados das frisas parece que estão nas galés e uma gigantesca árvore em palco corta a visão de metade do sector cénico aos infelizes da sub-cave no primeiro acto. No acto seguinte são bancos, cadeiras e maples que cortam a visão. Falámos com vários amigos que ficaram no sub-solo e queixaram-se amargamente. Entretanto no Ouro do Reno as cenas dos Nibelungos dentro do fosso só as puderam ver na televisão. Mais uma bola preta para a tal "democratização".

Mais detalhes sobre a produção e uma análise mais aprofundada quando tiver oportunidade de poder escutar de um lugar decente, é que ópera não é só teatro e encenação, é também música. A música é aquilo que mais é sacrificado nesta visão egocêntrica de Vick. É muito bonito terem-se caprichos mas sacrificar o público pagante é algo excessivo.

A produção, no entanto, e excluindo as ideias disparatadas de Vick, parece-me bem conseguida e ouviram-se e viram-se coisas bonitas. Os cantores são bons em alguns casos e a direcção de Letonja é muito razoável, creio que está mais no domínio do barco do que Pomaricò. Infelizmente a estreia continua a ser uma espécie de ensaio geral, muita coisa ainda está fora do sítio, ainda aparece trapalhada, entradas em falso, falta de coesão.

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Buffet no intervalo da Walküre 

Na Walküre de hoje fica aqui a minha experiência com o buffet no salão nobre.
Come-se de pé e com muito desconforto, a comida foi banalíssima, os bolos da sobremesa eram demasiados secos e industriais, o bolo de chocolate estava queimado, a tarte de amêndoa tinha a massa sequíssima e os pasteis de nata são um produto pesado que pode ser encontrado em qualquer casa de pasto a cheirar a fritos, os vinhos eram de qualidade muito limitada, o "sumo de laranja" era uma espécie de sumo em pó que temos medo de dar às crianças, não havia talheres para servir a sobremesa e um empregado, de forma prática e despachada, sem qualquer categoria para estar a atender, disse "tire com a mão que não há talheres"! O café final era uma espécie de fraco produto tipo café de hotel e não expresso. Por 25 euros no teatro nacional de S. Carlos espera-se que haja algumas condições. Vou voltar ao teatro para mais uma Walküre mas não repito o buffet, para mim foi bola preta.

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Asneiras wagnerianas I 

Dizer-se que Wagner foi influenciado por Nietzsche, apenas quem nunca leu nada e não tem qualquer perspectiva histórica pode dizer um disparate desses, pior quando se diz, como no programa do S. Carlos desta produção de Die Walküre que "[uma serie de autores] ... mais tarde Nietzsche podem ser evocados como referências evidentes".
Nietzsche era um jovem admirador de Wagner tratado condescendentemente por este. Nunca exerceu maior influência do que fazer recados em Bayreuth e ir à estação de comboio esperar convidados. Escreveu um texto crítico para o primeiro Festival de Bayreuth que ditou a sua auto-exclusão do círculo Wagner. Depois desta exclusão há o incidente da carta de Wagner que acusa Nietzsche de masturbação escessiva e por isso correr o risco de ficar cego! Facto que deixa Nietzsche furioso com os Wagner e leva a uma separação total.
De facto Wagner acabou por exercer uma tremenda influência no homem mais novo ao longo de toda a sua vida lúcida e nunca o contrário.

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23.2.07

A pressão da nulidade 

A pressão para a nulidade, ou como quem diz, popularidade, chegou para durar aos jornais ditos de referência, mesmo antes dos formatos copiados uns dos outros e todos do Guardian.

Leio um artigo sobre os perigos de Wagner ao volante! Brilhante tema, editores aos pulos de satisfação, popularização do assunto, mistura de pop com rock e Wagner! O sonho de qualquer editor de cultura, nulo e sem vergonha, dos dias de hoje. Eu até imagino o estado de espírito d@ (temos de meter aqui uma coisa politicamente correcta como esta moda do @ para género que não se sabe bem qual é, independemente de não existir em português) pobre de espírito: "é pá! vagner, kum kamandro pá, sto é chato pá, difícil stás a topar, alta koltura pá, não sei so leitor médio consegue aguentar kom eça coisa meu, eu nãn sei nada diço pá, á coisas que fogem hà minha comprenção de editor de koltura médio pá, i se meteçe-mos umas mer das-se aki pràligeirar a koisa meu? tipo umas coisas pop, meu. trivialisáva-mos a coisa pá, tipu embalagem pop meu, com un embrulho pop o povo que lê este paskim talvez já compreendê-se o tal do vagner mais as gordas das valkundias pá que iço dalta coltura é xata pá..."
Nota: Peço desculpa ao anarca pelo roubo do formato linguístico, aliás não percebo como o anarca ainda não é editor de koltura de um jornal de referência. Fica aqui a sugestão.

Não há grande novidade, quem gosta de Wagner há muitos anos sabe desses perigos, os meus amigos sabem desse perigo, sempre que venho a ouvir Wagner a minha condução torna-se ainda mais perigosa do que o costume e o passeio torna-se uma viagem alucinada pelos labirintos oníricos da loucura. Podiam entrevistar-me e eu dizia: "Sinto isso há uns anos, é horrível, estou a pensar visitar os wagnerófilos anónimos. A coisa está a dar cabo de mim, já dei cabo do MGA e do Aston, acabei com o mini de 73. Até o velho Land Rover de 1955, que não passa dos 60 à hora e que não tem rádio, está perigoso desde que inventaram o iPOD. Tenho vertigens, mas o pior nem é a cavalgada, que eu sou muito erudito e aquilo até é só fogo de vista, ou de ouvido, o pior são as Filhas do Reno, muito mau é também o Beckmesser, todo o Rienzi (pela seca interminável leva a estados de desespero), já o Parsifal tem um efeito calmante que adormece ao volante. É claro que os acidentes que se têm tido dependem das interpretações, pela OSP é costume haver ataques de hilariedade e os acidentes são menores, mas quando é o Kna ou o Böhm até já se partem pernas. Os duetos da Nilsson e do Vickers podem ter consequências muito graves e a morte de Isolda ou o Adeus de Wotan têm causado inúmeros acidentes e engarrafamentos na segunda circular."

Segundo o "O Público", existem umas sugestões da cavalgada das Valquírias no primeiro acto da Valquíria!!! Ena, ena! Está-se sempre a aprender.
Explico, não é um cheirinho da cavalgada, é mesmo o Leitmotif íntegro e pujante da cavalgada, e não é no primeiro acto, é no segundo.
O início do segundo acto da Valquíria inclui com tremenda afirmação o tema da cavalgada, em força e mais violento (e aqui há violência, não há que ter medo das palavras) e mais afirmativo do que no início do terceiro acto.

Quem escreve uma coisa dessas nunca deve ter ouvido a Walküre com ouvidos de ouvir e uma paixão sem limites pela música de Wagner.

O resto do artigo deve ser igual, não vale a pena continuar a ler. Já tenho vergonha de andar com o "O Público" debaixo do braço. Eu, que os meus amigos até acham que sou uma espécie de intelectual (não sei bem qual), acho bem mais digno e instrutivo ler o Correio da Manhã. Pelo menos não engana e é um produto bem feito por bons profissionais.

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22.2.07

E o Carmelo pegou-me... 

Luís Carmelo publica o seu 10º romance - E Deus Pegou-me Pela Cintura. O 10, como se sabe, representa a ordem e a lei.

Depois da falsa polémica da jornalista raptada fica aqui o capítulo 17 do romance, em pré publicação.
Muitos outros blogues se associam à ideia.
Acho que qualquer dia até serei convidado para uma entrevista do Carmelo sobre a blogosfera, seria interessante poder surrealizar um pouco sobre o assunto. Deve ser por isso, a minha constante surrealização do real numa hermenêutica alucinada (estou a aprender com o Sr. Hermenêutica, e esta hem?), que o Luís me pede para pré-publicar o romance e para alinhar na tanga do rapto e, apesar dos meus 4 anos aqui a pregar neste deserto, nunca se lembrou de mim para uma entrevista. Acho que ele sabe que sou difícil nessas coisas. Afinal nem tanto, pelos vistos. Coube-me um número primo, o 17... representa a ordem do universo, a ordem no caos, o mundo em toda a sua diversidade, material e imaterial, e a lei, o tempo e o espaço ordenados, o Céu Divino e a terra temporal mais a lei; nada mau, fica aqui a capa.


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19.2.07

A renúncia 

Os labirintos da negação do real e da renúncia, o drama do Sr. Hermenêutica, Veira de Carvalho, que tenta aniquilar pelo silêncio alicerçado na Hermenêutica Pré-Compreensão Paolo Pinamonti. Baseado numa teoria inventada na santíssima Ajuda ajudada por uma misteriosa nulidade palpitante e efervescente de miríficos sonhos tautológicos e (im)potências narcísicas, nulidade intelectual perspectivada num delírio omnipotente de domínios hermenêuticos da sapiência ontológica do universo, Vieira Hermeneuta tenta aniquilar quem não aprecia para dominar o que julga ser a sua Missão Messiânica. Vieira olímpico, de Hermenêutica em punho e na boca, calando os ímpios, trata Pinamonti como não se tratam as sopeiras. Sem prazo para o despedimento, trata quem lhe é infinitamente superior como se este fosse um criado de chapéu na mão.
O espectro de Wagner assombrará o Sr. hermenêutica, esse e mais o de todos os que amam a cultura e a música em Portugal. O Carvalho que será lembrado, nestes dias dos mais negros que a cultura viveu em Portugal, por ter fundido o ouro do Reno e o ter transformado em pechisbeque.

Seguem dois sonetos, cuja hermenêutica decifradora, agora na sua vertente pós-compreensão, deixo ao leitor que, sempre benévolo, não há-de entender malícia na citação do grande Bocage. Apenas um sorriso para aliviar da putrefacção destes miasmas políticos que nem um soneto do Bocage hoje mereceriam. Ficam para alívio e descarga dos humores.

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baco,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorância daqui, dali rapina:

Colhe de alto sistema e lei divina
Imaginário jus, com que encha o saco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promete alma sovina:

Círculo umbroso de venais pedantes,
Com torpe astúcia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flamantes:

Ora mijei na súcia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elefantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

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Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujo ladrador, cara de nico,
Loquaz saguim, burlesco Teodorico,
Osga torrada, estúpido rezinga;

E não te acuso de poeta pinga;
Tens lido o mestre Inácio, e o bom Supico;
De ocas idéias tens o casco rico,
Mas teus versos tresandam a catinga:

Se a tua musa nos outeiros campa,
Se ao Miranda fizeste ode demente,
E o mais, que ao mundo estólido se incampa:

É porque sendo, oh! Caldas, tão somente
Um cafre, um gozo, um néscio, um parvo, um trampa,
Queres meter nariz em cu de gente.


Manuel Maria Barbosa du Bocage



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Poder Autárquico Democrático 

Diz-se que uma das grandes conquistas da democracia foi o poder autárquico democrático, um poder que destruiu sem dó nem piedade todo um país, destruiu todo o litoral, as cidades e o meio ambiente. Vindo de viagem por Portugal chego sempre deprimido com o que vejo.

É facto que o português típico, inculto, sem sentido estético, espertalhão, invejoso, ganacioso e egoísta passou a dominar o poder local, uma democratização sem dúvida.
Um poder corrupto de gente que é o espelho de um país de gente corrupta, atrasada e analfabeta.

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17.2.07

O belo e o possível 

Regresso de um concerto: Das Klagende Lied de Mahler com Zilm ao volante. Como é incrível a transfiguração de uma orquestra e de um coro com um maestro que sabe da poda. É evidente que a Gulbenkian não passou a "Grande Orquestra Mundial", que o coro deixou de berrar, que os trombones conseguiram moderar os seus ímpetos belicosos, que o Luxton conseguiu ter entradas limpas mais o seu naipe de trompas, que o equilíbrio tenha sido alcançado com naipes reduzidos de cordas, que o Andreas Schmidt tenha voltado vinte anos atrás e recomeçado cantar bem, que a soprano Oelze tenha ganho voz para encher a sala, apesar do seu belo timbre, que o tenor Trost tenha adquirido categoria. No entanto Zilm domina a obra e tem a música nas veias, os cantores Birgit Remmert e Manuel Ferrer (menino cantor) corresponderam bem, as madeiras estiveram bem, os trompetes, herpas e percussões bem estiveram, assim como as cordas, embora em défice sonoro.
Manuel Ferrer tem de controlar a tendência de cantar balanceando o corpo como se tratasse de um pêndulo, é um erro que se torna num vício difícil de corrigir, por outro lado o registo de peito do rapaz é algo desafinado, trata-se de um jovem de 12 anos, correspondeu de forma notável, o que não impede que fiquem estes apontamentos para correcção futura. O Coro esteve bem, apesar de alguma gritaria desnecessária.
O melhor foi mesmo a concepção de Zilm, coerente, de acordo com a natureza algo escessiva de uma partitura de um jovem compositor, Mahler, à procura do seu caminho, numa cantata dramática e cheia de elementos ultra românticos. Zilm foi enérgico sem perder o pé, corrigindo defeitos de forma subtil, sempre em cima do acontecimento, dando entradas com certeza, ligando a música e as diferentes secções sempre com sabedoria. A impressão geral foi de coerência, de exploração da música de Mahler com aproveitamento perfeito do rubato na vizinhança dos pontos axiais de maior tensão, sendo moderadamente atormentado nas secções mais líricas, o que evitou a queda no mau gosto estilístico. Apenas se lhe pedia uma maior moderação nos excessos sonoros de metais e coro.
Sem construir um belo impossível, a sua arte trouxe o bom sem se torturar na busca do óptimo, sabendo bem onde encontrar o compromisso. À frente de uma grande orquestra Zilm será fantástico, à frente da Gulbenkian foi bom. Um bom concerto, bem melhor do que o das "Grandes orquestras Mundiais" de terça feira última.
O que ouvimos da banda fora da sala, bem longe, pareceu-nos também em bom plano.

Uma nota para Andreas Schimdt, foi um cantor com currículo razoável há muitos anos, agora arrasta-se pelos teatros de ópera, incapaz de afinar no registo grave e médio, foi simplesmente desastroso. Contratar por currículo tem destes inconvenientes, os fiascos, como os últimos festivais de Bayreuth não se incluem no currículo... Tive o desprazer de escutar o cantor nas últimas aparições em Bayreuth, v.g. no Tristan de há dois anos, e ouvi Schmidt ladrar desafinado, acabando por ser substituído depois das primeiras récitas. No ano passado, 2006, já foi outro cantor a ser chamado para o papel de Kurwenal. Na crítica publicada na época, há dois anos, escrevi sobre Schmidt:

Kurwenal – Andreas Schmidt – 00. Péssimo.

"E somos chegados a Kurwenal, um currículo invejável, um nome como Andreas Schmidt numa decadência incrível, nunca pensei que fosse possível em Bayreuth encontrar uma situação tão penosa, seria caricato se não fosse destrutivo para a música de Wagner. Nem uma nota afinada, agudos penosos, geralmente meio-tom a um tom abaixo no ataque das notas, depois glissandos (portamento seria favor) a tentar chegar ao tom certo, depois voltar a descer sem capacidade de sustentar a nota. Respiração penosa, interrupção da frase para respirar ofegantemente, voz feia no todo, horrível nos graves, um barítono a rosnar nos graves, sem linha melódica. Gritou, uivou, mas cantar não cantou. Indigno de Bayreuth, lamentável. Penoso na estreia também, isto segundo a crítica italiana e inglesa. Foi tremendamente vaiado no final do terceiro acto, como não podia deixar de ser."

Que os senhores da Gulbenkian não leiam as minhas críticas ou não lhes prestem atenção, ainda aceito. Mas o Guardian? O Times? O Le Monde de La Musique? Todos os jornais da Bloomberg? Todos os italianos? o Le Temps de Genève? Não interessa que Schmidt seja vaiado em todos os teatros do mundo? Como se pode aceitar que este pobre cantor possa aparecer num palco português. Refugo e mais refugo em termos de solistas é o que temos tido nos concertos regulares da orquestra Gulbenkian. Pede-se mais atenção aos programadores na aceitação de toda a porcaria que os agentes apresentam. Qualquer Luís Rodrigues está milhares de furos acima de um Schmidt sem voz, incapaz de afinar, e em decadência total. É muito bonito dar segundas oportunidades a esta gente, mas o público paga bilhete para ouvir alguém com o mínimo de dignidade e de respeito pela música. Bola preta para esta contratação.

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16.2.07

Ciclo Médias Orquestras Mundiais 

O Ciclo das Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian prossegue. No Coliseu, noite de terça feira, 13 de Fevereiro a Orquestra de SWR de Baden Baden e Freiburg, uma orquestra de categoria média apresentou-se no Coliseu. O programa anunciava as 21h como início do concerto mas inexplicavelmente e sem qualquer aviso ou pedido de desculpas a orquestra entrou em palco às 21h16m, o maestro às 21hh18m e o concerto a sério só começou às 21h20m, sem qualquer aviso ou pedido de desculpas. Indesculpável, deselegante e mal educado, muito pouco habitual numa "grande orquestra mundial" e ainda por cima alemã. Só por esse motivo o qualificativo de "grande" estaria logo à partida comprometido.

Sylvain Cambreling, um maestro habituado aos fossos de ópera, foi director em Frankfurt, modificou a ordem do programa, e parece que bem, Feu d’artifice de Igor Stravinsky é uma boa peça de abertura, ou de fecho, e não uma peça de miolo de programa, aliás muito bem construído e com base numa estética de início de século XX, entre o ultra-romantismo e a modernidade.
Uma obra cheia de vigor e energia foi lida por Cambreling, como em geral no resto do concerto, de forma superficial. Energia não é tudo, e se aquilo foi rápido também foi confuso, impreciso, cheio de erros rítmicos, falhas de coordenação entre os naipes, ataques antes e depois do tempo, é evidente que os erros não foram estrondosos, mas se os fogos de artifício fizeram muito estrondo foi sempre com cores pálidas, o pior do concerto.

Prélude à l’après-midi d’un faune de Claude Debussy é uma obra prima de um dos compositores maiores de todos os tempos, musicalmente de longe a melhor obra do programa. Infelizmente a flauta que abre com um deslumbrante solo:



confundiu o "doce e expressivo" com "vibrando como um bode", como a intérprete é alemã talvez tenha sido um erro de leitura do francês, o que é certo é que em vez de uma linha puríssima, etérea, tivemos um vibrato horrendo. Cambreling parecia deliciado, a coisa parecia que tinha descido de Grande Orquestra Mundial a orquestra do bairro de Freiburg, tipo mini orquestra de província. Felizmente a coisa continuou melhor, os outros sopros estiveram muitíssimo bem, infelizmente os violinos, primeiros e segundos, não apresentaram a sonoridade refinada das violas, violoncelos e contrabaixos, foram ao longo do concerto um naipe inseguro, pouco maduro e com diversos erros que afectaram a coesão das obras, os próprios pizzicatos saíram quase sempre harpejados. A coesão geral da orquestra nas entradas também não foi muito exacta. Cambreling tentou uma interpretação refinada em Débussy, assim parecia pela géstica, mas o resultado foi apenas mediano, uma leitura pouco intensa, pouco erótica, quer pelas sonoridades, quer pela leitura geral mais aparentada a uma costura de trechos ensaiados por blocos do que por uma fluxo contínuo saltando, imperceptível, de episódio em episódio.
Michael Zilm à frente da Metropolitana de Lisboa, pese a diferença de orquestras, foi muito superior como intérprete do que este Cambreling.
Acabou tudo em desgraça, tal como tinha começado, com o pizzicato final nas cordas graves em simultâneo com o ataque das harpas, no penúltimo compasso, a sair num horrível harpejo, simplesmente arrepiante no pior sentido.

Dagmar Peckova é um meio soprano com voz desigual, não tem potência igual em todos os registos e a sua voz não tem o poder para encher o coliseu, felizmente conseguiu com inteligência adaptar-se ao discurso de Alexander Zemlinsky nas Seis melodias sobre poemas de Maurice Maeterlinck, op.13. Música injustamente esquecida e de grande qualidade. O discurso poético foi sublinhado com invulgar inteligência pela cantora, a leitura poética com a ênfase nos pontos chave, o fluxo do seu legato, a sua respiração, a construção das frases de forma a atingir o clímax nos pontos de tensão fizeram deste momento o melhor do concerto. O maestro, bom acompanhador, habituado à ópera, conseguiu neste ponto do programa esquecer-se de tentar ser "um grande maestro mundial", e mais solto e descontraído no pódio, entregou-se a um domínio superior da orquestra que conseguiu encantar com a sua densa sonoridade e pelo recorte da harmonia luxuriante e erótica de Zemlinsky. Apesar de um vibrato demasiado pesado nos finais de frase das notas mais graves de Peckova, que sendo fabricado e não natural, acaba por ser de mau gosto, gostámos muito desta obra que acabou por salvar o concerto.
Peckova além disso tem graves impressionantes, densos e escuros que encantam escutar quando não resolve aplicar o vibrato no final das notas.

Pelléas et Mélisande de Arnold Schönberg é um obra injustamente classificada como magnífica, subtil, brilhante, obra prima e o mais a sete. É, para mim, uma obra mal conseguida, repetitiva, excessivamente carregada de contraponto que a torna pesadíssima, um fruto tardio do ultra romantismo serôdio. Tenta explorar as ideias do motivo condutor de Wagner, mas sem a energia, a subtileza, o saber dar e tirar no ponto certo do génio alemão, repetindo até à exaustão e ao cansaço os mesmos temas sem capacidade de renovação, recorrendo ao cromatismo mas sem abandonar a tonalidade. Tenta a efervescência orquestral de Richard Strauss mas sem o engenho orquestrador do austríaco. É uma coisa híbrida, maciça, com uma orquestra sobre dimensionada para as capacidades de orquestrador de Schönberg, 18 metais, 17 madeiras, 4 harpas e mais 6 percussões. Um tema em ré menor que se repete centenas de vezes, uma obra mastodôntica. É evidente que tem belíssimos momentos orquestrais, que o compositor consegue criar massas e texturas aqui e ali a romper a monotonia, mas a impressão geral é de massa informe de contraponto sem finalidade, uma obra de juventude, longe da precedente Noite Transfigurada, essa sim uma obra de altíssima inspiração. O final quase salva a obra com a meditação sobre a morte de Melisande, em que finalmente Schönberg mostra do que é capaz, e veio a fazer no futuro.
No que seria o prato de resistência Cambreling deu tudo o que tinha, mas não conseguiu inventar o que não tinha, nem em recursos orquestrais, nem na partitura, nem em si próprio. A interpretação soou de novo a uma colagem de momentos, é certo que a orquestra trabalhou bem nos pontos mais solísticos, os clarinetes estiveram brilhantes, o naipe das trompas foi simplesmente genial, oboés e fagotes em altíssimo plano, flautas um pouco abaixo, o primeiro viola foi poético, com uma sonoridade de grande nível, os naipes de cordas graves estiveram soberbos, mas os trombones se estiveram bem na produção do som, falharam claramente na precisão dos ataques. Faltou também equilíbrio geral de sonoridades, as cordas foram muitas vezes suplantadas pelos sopros, penso que seria necessário reforçar o escasso naipe de 15 primeiros violinos e 14 segundos para equilibrar um pouco os números dos sopros, mas um bom conjunto de violinos poderia dar maior coesão ao conjunto, o que não aconteceu na terça feira.
A interpretação de uma obra destas é sempre muito complexa, creio que apesar dos defeitos apontados o maestro conseguiu trazer para fora do poema sinfónico de Shönberg alguns aspectos interessantes, sobretudo nos efeitos sonoros, e percebeu melhor esta obra do que o Debussy da primeira parte.

Um concerto médio de uma média orquestra mundial.

P.S. Li no Público uma crítica tão ao lado do que aconteceu no concerto que a única coisa que me ocorre é sugerir ao jornal que pague ao jovem crítico, embasbacado com uma orquestra melhor do que a sinfónica portuguesa, uma viagem de estudo para ouvir umas orquestras, qualquer cidade alemã serve, mas Dresden e Leipzig seriam bons pontos de partida, até Bamberg seria bom, e nem falo de Berlim.
No caso da Berliner sugiro mesmo uma voltinha ao próximo festival de Páscoa de Salzburg, pode aí ouvir a Berliner em mais um Ouro do Reno, faltam seis semanas. Segue o texto do Público para se perceber a diferença de perspectiva. Já agora: o novo formato on-line do Público é miserável, tal como miserável é a orientação das páginas de cultura do mesmo jornal, em papel e on-line. O artigo de página inteira sobre o "Pior Português de Sempre" foi rasteiro: um arrazoado repetitivo sem assunto que se arrasta por uns dez mil caracteres, uma vergonha jornalística. Um tema que trabalhado de forma mais irónica e inteligente teria dado uma boa peça de jornalismo.



O mundo numa grande orquestra, límpida, rigorosa e profundamente inspirada
15.02.2007

Uma alteração ao programa fez o Feu d"artifice de Stravinsky passar para primeiro lugar. E que fogo de artifício! A peça não chega a cinco minutos, e o maestro Sylvain Cambreling também não se pôs com cerimónias. "Despachou" Stravinsky com a pujança que uma obra destas exige - uma música em que a justaposição de elementos díspares, mais do que desenvolver ideias, nos atira aos ouvidos uma fúria de sons e cores, aparentemente incoerentes, mas com um grande impacto. A peça, contemporânea do cubismo na pintura, vive de um efeito de choque e de surpresa. Foi boa opção passá-la para o princípio do concerto, mas terá passado um pouco despercebida, porque o público ainda estava a aquecer as cadeiras.
Seguiu-se o efeito contrário - da surpresa e do choque passou-se para o reconhecimento, mais confortável, do famosíssimo e justamente aclamado Prélude à l"après-midi d"un faune de Debussy, uma obra inebriante e envolvente que a orquestra da SWR revelou de forma muito segura e competente, mostrando uma secção de cordas especialmente certeiras e com um som de conjunto que encheu o Coliseu.
Entrou de seguida Dagmar Peckova, meio-soprano checa, com uma voz onde se centraram quase todas as atenções. Quase, porque as Seis melodias sobre poemas de Maeterlinck, de Alexander von Zemlinsky, são peças em que a orquestra tem um papel muito importante, que não se confina a acompanhar o canto. Pelo contrário, a grande dificuldade de cantar estas Seis melodias resulta precisamente da voz ter de emergir de um mar de sonoridades que carregam tantos sentidos como as palavras que a voz nos traz. Peckova consegue passar por uma variedade de timbres e tem um inegável sentido dramático, que valorizou muito a obra de Zemlinsky e disfarçou uma certa tendência da cantora para alguns agudos excessivamente metálicos. Mas esta obra é um desafio infinito para qualquer meio-soprano, e Peckova esteve, no cômputo geral, muito bem, porque muito próxima da orquestra (o que era fundamental) e com belos timbres escuros e graves.
Muitos espectadores estiveram irrequietos, mas não chegaram a prejudicar a música. Ao intervalo puderam tomar o seu café ou dar dois dedos de conversa. E depois desse momento indispensável em qualquer evento social que se preze veio uma arrasadora confirmação de que estávamos perante uma grande orquestra, como promete este ciclo organizado pela Gulbenkian (e co-financiado pelo mecenato de um banco). É que a Orquestra de Baden-Baden tocou fabulosamente o Pelléas e Melisande de Schönberg, uma espécie de poema dramático sem palavras, mostrando de uma forma límpida, rigorosa e profundamente inspirada todas as subtilezas desta magnífica obra sinfónica. Todos os músicos estiveram embrenhados na excepcional música de Schönberg, até ao âmago. É assim mesmo, uma grande orquestra.

Pedro Boléo

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10.2.07

Novo Podcast 

Louvar a vida, a terra, louvar o Criador, a Natureza, o Corpo e a Alma. É a celebração do Salmo 100, na música de Schütz, é a natureza do Te Deum católico, em latim ou na tradução para francês, do hino de Santo Ambrósio e Santo Agostinho (esta autoria é muito questionável sendo provavelmente de São Cesário), na música de tantos compositores. Assim se constrói um podcast em tempo de reflexão, sem palavras... O podcast8 já saiu, são duas horas de música que não tem fim.


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S. Francisco 

A nossa sociedade é putativamente tolerante, temos tendência a considerar-nos os mais civilizados, "que horror voltar à idade média"...
Será que hoje o S. Francisco, se voltasse a esta terra tolerante, escapava de ser internado num hospital psiquiátrico?

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1.2.07

A teia dos argumentos 

Relativamente ao sim (e ao não) à liberalização do Aborto toda a espécie de argumentos são usados. O problema profundo e filosófico é escamoteado.

Carlos Manuel Castro, no Tugir diz, implicitamente, que ninguém pode criticar a lei espanhola porque, pasme-se, na Catalunha as mulheres com mais de trinta e cinco anos apresentam uma maior taxa de gravidez, e são mães cada vez mais tarde. Segundo ele essa é uma idade "que muitos não consideram desejável". Tudo serve, mesmo os maiores disparates lógicos que, neste caso, são um perfeito atentado à inteligência do leitor.

Explico a falácia de tal argumento, a natalidade tem subido devido a alguns factores:

1. Maior qualidade de vida e desenvolvimento económico, levam a uma maior natalidade que se relaciona com a confiança no futuro. A natalidade em Portugal é baixa e será cada vez mais baixa, porque Portugal é um país triste, de gente triste, sem cultura, sem horizontes, em crise permanente, governado por corruptos e mentirosos que são iguais aos governados. Para romper uma baixa de natalidade é preciso em primeiro lugar uma profunda revolução, uma revolução cultural e de mentalidades, nada tem a ver com a lei do aborto. A Catalunha, ao contrário de todo o Portugal, é um território de alegria, de crescimento e de esperança.

2. As mulheres mais velhas podem agora ter mais filhos, isso tem a ver com as suas carreiras, e com uma entrada muito competitiva no mercado de trabalho que lhes dá poucas hipóteses de terem a maternidade na idade de maior fertilidade.
A lei espanhola do aborto facilita precisamente esta situação, as mulheres recusam a maternidade se isso prejudica as suas carreiras, quando se diz que: apesar da lei há mais natalidade, está-se a cometer um erro de julgamento e uma manipulação da realidade, essa lei contribui apenas para uma natalidade mais tardia.

3. A eficácia da medicina na resolução do problema da infertilidade que atinge mais de dez por cento da população e que numa sociedade onde existe maior poder de compra e apoio do sistema nacional de saúde vai também pesando no aumento da natalidade junto de mulheres mais velhas que engravidam pela primeira vez, ao contrário de Portugal.


Isto leva-me à questão do aborto e à sua premência política em Portugal. O aborto em situações sócio-económicas graves ocorre apenas num número reduzidíssimo de situações, tendo entrado em hospitais devido a complicações com aborto clandestino em 2006 menos de uma dezena de mulheres; ao contrário dos milhares de "desgraçadinhas" que se propalam por aí nas campanhas. A infertilidade afecta mais de dez por cento dos casais e ninguém se peocupa em defender as situações em que casais desfavorecidos tentam desesperadamente engravidar. O sistema nacional de saúde não tem contemplacões para essas situações trágicas e de grande sofrimento para muitas jovens mulheres e homens portugueses.

O aborto clandestino vai continuar a realizar-se porque as mesmas mulheres que abortam hoje, continuarão a abortar nas mesmas condições, não terão dinheiro para ir às clínicas para a classe média e alta. Em situações de problemas psicológicos, físicos, violações, riscos para o feto, o aborto já é permitido e mesmo assim o sistema nacional de saúde não responde muito bem, como será no caso de receber mil e oitocentos casos (ou mais) de pedidos de aborto indiscrimado?
Despenalizar não será solução para nada disto. Entretanto será que os casos de aborto a pedido terão prioridade sobre todos os outros casos do sistema nacional de saúde? Para mim seria um escândalo e uma vergonha para este país.
O pai não tem uma palavra a dizer nesta liberalização, o pedido é da mulher consagrando a total desresponsabilização do pai nestas circunstâncias. Que confortável para o Estado esta demissão, menos processos de paternidade, menos casos de Torres Novas.

Entretanto as mulheres com dez semanas e um dia de gravidez e que abortem, irão parar à cadeia? Com que critério?

No meu entender é tudo uma grande hipocrisia. Enquanto não se defender a maternidade e se apoiar essa mesma maternidade, a que se dá naturalmente e a que não consegue ocorrer, que afecta um número esmagadoramente superior de pessoas em Portugal, não se pode mudar uma lei que já defende a mulher e o feto, mesmo em situações extremas.
O que é mesmo necessário não é a liberalização, é essa revolução das mentalidades, a começar pelos defensores do aborto liberalizado e a pedido que, de acordo com as suas ideias modernas, deveriam ter as prioridades mais estruturadas nas suas esclarecidas e libertárias cabeças.

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