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29.3.05

Ópera no S. Carlos III - Ossos partidos 

Preocupo-me nas reflexões que aqui faço em realçar os aspectos artísticos globais. Pode-se dizer que comigo as divas vêm sempre atrás. Tenho mesmo aversão ao excesso de destaque que algum cantor mais famoso tem da parte de algum público e de alguma crítica. É pois um pouco anómala a referência à encenação das óperas actualmente em cena no S. Carlos no final desta pequena série de fascículos críticos sobre as óperas de Mascagni e Massenet. Esta referência final deve-se à própria incongruência da encenação que mereceu mais reflexões do que as inicialmente previstas e, logo, um maior atraso.
Recordamos os créditos da produção em termos cénicos. Encenação: Guido de Monticelli. Cenografia: Fausto Dappiè. Figurinos: Zaira De Vincentiis. Desenho de luzes: Sergio Rossi.

O problema é simples de colocar. As encenações das duas óperas parecem aparentadas mas estão a anos luz de distância. Enquanto a Cavalleria Rusticana tem uma encenação que se desenvolve em cima de uma espécie de monte escarpado, a encenação da Navarraise, utiliza os mesmos elementos físicos mas adaptando-os a uma mistura de trincheira e de barricada. O monte da Cavalleria é rasgado pelos soldados da Navarraise para "desconstruirem", na ideia do encenador, a cena inicial da primeira ópera e produzirem a cena da segunda. A ideia é gira e dá um efeito de grande espectacularidade no início da Navarraise, mas será que um belo efeito justifica toda uma encenação? No meu entender a minha resposta é um rotundo não.

Vejamos a cena da Cavalleria: figurinos interessantes mas "veristas", toda a gente está vestida como se estivéssemos numa aldeia siciliana do final do século XIX ou princípio do vinte. Uma espécie de aldeia estilizada e de folclore, mas muito naturalista. O cenário é um monte escarpado, não uma colina suave, e de tal modo escarpado que Elisabete Matos já partiu um dedo (cremos que na segunda récita) e continuou a cantar bravamente, cantores e figurantes que andam a trepar por ali acima e abaixo correm um risco tremendo. O público tem de espreitar e esticar os pescoços porque a visibilidade da plateia para aquele monturo é muito má. Dir-se-ia que é a primeira ópera a que assisto que é encenada, não para a plateia mas para as ordens mais elevadas dos camarotes! Depois não faz sentido estarmos numa aldeia com pessoas a entrar e sair de casa vestidos a rigor histórico (ou numa tentativa) numa paisagem desolada, lunar, onde não há casas com jardins, onde o largo da igreja é um monte onde se esperaram ver surgir cabras a pastar. Sinal da igreja? Nenhum: apenas um monte escarpado... A desconstrução da ópera e dos seus referentes cénicos misturada com o conservadorismo mais atroz nos figurinos.
A luz, é encarada num lado mais psicológico do que físico, e nisso o efeito é interessante, nas cenas mais densas e dramáticas escurece o céu, nas cenas mais alegres temos luz por todos os lados. Faz sentido. O arco temporal é iniciado por luz de nascer do céu e encerrado por luz de início de noite. O que volta a fazer sentido. Pelo meio toda uma paleta de emoções transmitidas pela cor do fundo do palco, que neste caso representa também o céu.
As marcações são também estranhas e ditadas pela inclinação da cena. Assim Santuzza (E. Matos) tem de implorar a Lucia (S. Marcello) de costas voltadas para esta e de frente para o público! Qualquer futura sogra de uma aldeia siciliana nessa situação daria um pontapé no traseiro da putativa nora! O equilíbrio instável dos cantores dita a sua dificuldade de movimentação em palco e marcações deficientes em esforço e pouco naturais.
A cena da procissão é o apogeu da trapalhada, se não pensarmos que temos dois bispos! Dois! Ainda temos mais dois padres. Para aldeia pobre da Sicília estamos bem abonados de bispos... mas o pior não é o excesso de clérigos em palco, o que seria apenas incongruente, é pensarmos: o que anda uma procissão com dois bispos a fazer numa encosta escarpada mais própria para cabras do que para uma festa religiosa? Enfim, chega a ser confrangedor. Se a encenação pretendesse ser “modernaça” e transgressora ao menos que se vestissem os bispos à Flash Gordon! Ou como pastores bucólicos... Assim é apenas inconsistente.

Parece que o encenador esteve a gozar com a rapaziada que se arrasta em perigo constante de cair para o fosso da orquestra de roldão com a possibilidade iminente de pernas partidas. Em suma: uma encenação destruída por uma cenografia incoerente, marcações fracas e incongruências estilísticas. Figurinos apropriados numa cenografia mais convencional. Luzes apropriadas a uma encenação mais radical.

Finalmente a encenação da Navarraise.
Navarraise é um mau texto teatral, um disparate pegado, se o rapaz amava realmente a rústica Anita nunca deixaria o pai exigir dote a esta. Aracil é um tíbio, desconfiado e fraco. Anita é uma tresloucada, capaz do crime para obter o que quer. Afinal ama realmente ou é apenas desvairada? O general é também mal construído, não tem densidade, fundo, nem sequer os estereótipos funcionam. O encenador resolveu neste caso o problema desenvolvendo ao máximo o lado cénico, ao contrário da Cavalleria. A cenografia constituída pelo monte da ópera anterior, mas esventrado e transformado numa barricada, serve às mil maravilhas para uma cena de batalha. Os cantores já dispõem de espaço cénico para desenvolverem os seus movimentos e cantarem mais descontraídos, sem medo de caírem e partirem um pé. Os soldados trajados a rigor, com fardamentos apropriado à guerra carlista. O que não existe na cena e na música é agora tratado pelo encenador, movimentos de soldados, tiros, mosquetadas, estrondos na música e clarões luminosos. Figurinos, luzes e cena bem executados. Movimentos simples mas eficazes.
Curiosa a cena em que Anita encontra Aracil e estes se declaram sem se aproximarem, como se tivessem medo um do outro. A princípio achei um disparate, se se amavam correriam um para o outro, mas pensando melhor o encenador dá-nos o seu pensamento: o par, de facto, sofre de uma doença: uma febre mista de paixão, ciúme, desconfiança. Fruto da guerra? Das privações? Stress pós traumático? Parece que sim.
E como lidar com uma cena de guerra, cheia de mortos, em que aparece uma rapariga a cantar uma alegre melodia espanhola, castanholas e salero! Olé! É caso para dizer que Massenet consegue envenenar qualquer espécie de verosimilhança e progressão dramática... O encenador lá tem de disfarçar e fazer a coisa o menos mal possível.
Em resumo: esta ópera não merece que um mero efeito cénico a coloque em segundo lugar. É uma obra menor e deveria ter sido programada para início da récita. Um efeito cénico que condiciona toda a Cavalleria e a destrói apenas para se poder usar o cenário na segunda parte. Um palco nu seria muito melhor do que aquele monte infecto que polui a Cavalleria.

Uma encenação desigual condicionada por uma concepção apriorística que não tomou como factor de peso a qualidade das obras mas um capricho de encenador. Uma encenação correcta da Navarraise e muito fraca na Cavalleria.


O Duque 

Vejo cada vez mais hélices na paisagem. Vejo cada dia que passa menos árvores, menos verde, menos água.
O que era paisagem rural é agora um vasto campo de hélices, uma espécie de paisagem industrial futurista com gigantescos geradores eólicos, dezenas, centenas nos montes, conspícuos a afrontar o espaço e a reduzir os nossos horizontes.
Será isto o progresso? Importar uma ideia. Uma moda gananciosa? E o mar, porque não aproveitar a força que o mar tem para nos dar. Mar que é nosso, pelo menos no inconsciente.
E os campos que estão cinzentos de seca, agora mitigada, chuva tardia que vai servir apenas para uma necessária fresa dos terrenos. Trigos que não crescem, searas de pão escasso, que vem de fora. Nem os vinhos nos alegrarão, nem mesmo serão suficientes para nos fazer esquecer as tristezas. Sobra o cão alegre e feliz, que rejubila à nossa chegada e se entristece com a partida.



25.3.05

Boa Páscoa 



Boa Páscoa e uma Sexta Feira Santa de grande recolhimento e meditação rodeados da melhor música que o Homem conseguiu produzir para Glória de Deus. Fico com as Paixões de Bach, de Schütz, e da Paixão anónima de Upsala, Leçons de Ténèbres de Charpentier e Couperin, responsórios para o Sábado Santo de Gesualdo, a Paixão S. S. M. de 1750 de Telemann e a Brockes Passion de Handel. Quem conseguir que ouça também o Parsifal de Wagner.
Assim o desejo a todos os que acreditam, ou não, na Paixão de Cristo.



Os 71 anos afinal eram 56! 

Email recebido por um leitor devidamente identificado e que agradeço sinceramente, foi-me dito por um conhecedor que o tenor teria 71 anos, o que parecia quase impossível, e motivou a minha pergunta "é verdade que tem 71 anos?" Espero pois que a informação recebida e que parece que surge no site do cantor esteja correcta (eu procurei e não encontrei). Os comentários sobre: os médios, a dificuldade de afinação do cantor quando em duo com Elisabete Matos e o exagero do vibrato com excesso de amplitude de frequência; ficam assim reforçados e são pouco justificáceis.

To : criticodemusica@hotmail.com
Subject : Kristjan Johannsson

Caro Henrique Silveira.

Não sei de onde vem a ideia ou boato, que o tenor Kristjan Johannsson tem 71 anos, mas é pura mentira, tem apenas 56 anos...

"Kristjan Johannsson(1949-)
See his website at: http://www.johannsson.it/

Fica a informação.

Assinatura


23.3.05

Ainda Ópera no S. Carlos 

Como se notou não foram ainda objecto de reflexão a prestação da orquestra, do coro, do maestro enquanto intérprete e da encenação, na produção do teatro nacional português com duas pequenas óperas, a Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni e a Navarraise de Jules Massenet. Hoje ficamos pelo lado musical, para a semana será analisado o lado cénico que vem aí a Páscoa...

Encenação - Guido de Monticelli
Cenografia - Fausto Dappiè
Figurinos - Zaira De Vincentiis
Desenho de luzes - Sergio Rossi

A orquestra esteve francamente bem apesar de um maestro que me pareceu titubeante e pouco consistente do ponto de vista musical. Foi ridículo ver dar uma entrada como se tratasse da entrada das tubas infernais antes do juízo final e, afinal, sair um pizzicato anémico e em pianíssimo! O fortíssimo vinha um compasso depois e o rapaz andava perdido... não é só o Peskó! O seu nome é Jonathan Webb, e se antes (Uma Tragédia Florentina de Zemlinsky) tinha deixado uma impressão razoável, ontem deixou a impressão anónima de ser mais um maestro dos muitos que por aí andam. Felizmente a OSP soube reagir e conseguiu estar muitíssimo bem sem ligar muito ao tempos vagos e à imprecisão do maestro. Espera-se que este suba de forma nas récitas que faltam, sem uma condução segura e inspirada as lindíssimas melodias de Mascagni, soam sempre um pouco desconexas. Mascagni é mais um génio natural da Itália e a sua música faz cantar a orquestra, mas sente-se a falta de um pulso organizador. Parabéns à orquestra que apesar das falhas óbvias do maestro foi capaz de dar uma leitura razoavelmente coesa do material.

CAVALLERIA RUSTICANA
Pietro Mascagni. Libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci segundo a peça de Giovanni Verga.

Santuzza - Elisabete Matos. Canta muito bem mas não me parece a voz apropriada ao papel, prefiro-a em papéis de maior peso dramático, de qualquer modo o seu timbre vocal e a sua presença em palco foram muito positivos. O pior foi a falta de sentido do tempo (e de concepção) e a incapacidade de levar a música para diante, Elisabete Matos pára nos final das frases a ouvir as suas próprias notas, ficando com pouco tempo para voltar a pegar na melodia se o maestro não segura a orquestra. Resulta uma interpretação antiquada, sacudida, sem ritmo nem impulso. Como a orquestra geralmente (e muito bem) seguia por diante sem servir de espelho a Matos, esta ficava muito aflita a tentar recuperar o tempo perdido, cantando sofregamente até conseguir recuperar o atraso. Fracções de segundo que são suficientes para arruinar uma interpretação...
Turiddu - Kristjan Johannsson. Uns agudos ainda muito bonitos, (é verdade que tem 71 anos?), uma entrada muito bela numa canção siciliana que dá o mote à ópera de forma notável, mas médios já a mostrar o peso da idade, um pouco feios e, nos fortes, muito gritados. A desafinação teve de andar a ser disfarçada por um vibrato lento muito desagradável, sobretudo no registo médio, a fazer lembrar um bode (isto para quem não esteve no S. Carlos e para tentar imaginar). Johannsson esteve bem melhor a solo do que em dueto onde teve evidentes problemas de colocação, sustentação e afinação. Um tenor ainda muito vigoroso para a idade que tem, talvez seja apenas um erro de casting insistir numa voz assim para um papel do brilho e da alma de Turiddu, homem do Sul, capaz de inspirar paixões nas mulheres, e de morrer anavalhado atraiçoado pelas pulsões que não reprime. Diria que foi positivo... ma non troppo.
Alfio - Carlo Guelfi. Entrou a frio mas depois de aquecer esteve bem. Cumpriu na Cavalleria e reapareceu na Navarraise. Foi odiento e sibilino na Cavalleria.
Lola - Alessandra Palomba. Uma boa actriz, vocalmente pouco estimulante, cantou bem na cena em que faz ciúmes a Santuzza, mais pela interpretação do que pela vocalidade.
Lucia - Simona Marcello. Esteve bem no plano teatral, vocalmente correcta, mas também não impressionante.
Coro - Já não hesito em dizer que o coro está a ficar a cantar razoavelmente, os progressos são notáveis, já cantam afinados e com presença cénica. O fraseado já faz sentido. Não fora um soprano ficar para trás (só e a arrastar uma nota) na cena da entrada do compadre Alfio, com um timbre que me fazia lembrar o de um toque de telemóvel, e teria sido quase sem falhas.

Da Navarraise não digo muito por me ser doloroso escrever sobre o enjoo do Massenet.
O maestro esteve na mesma mas numa obra destas pouco se pode melhorar ou piorar, é uma ópera de muito má qualidade musical. Que se pode dizer? O tiros foram dados a tempo nas múltiplas fuzilarias da obra.
Sobre a orquestra não digo grande coisa também... pareceu-me bem. Mas se tivesse tocado mal também pouco se notaria, é difícil ser pior do que as notas que estão na pauta... O coro esteve francamente bem a suportar a fuzilaria e a barulheira e a conseguir cantar afinado. Bravos senhores que não partiram nenhuma perna naquele escarpado cenário.

LA NAVARRAISE
Jules Massenet

Episódio Lírico em dois actos. Libreto: Jules Claretie e Henri Cain após o conto de Claretie La Cigarette.



Anita - Enkelejda Shkosa. Uma voz bonita desperdiçada num papel esquizofrénico e sem sentido teatral ou lógica na acção. Mostra, apesar dos defeitos literários e musicais da obra, capacidade de transformação e de composição. Impressionou favoravelmente, uma boa aposta do teatro numa voz clara e timbrada e uma presença personalizada.
Araquil - Aquiles Machado. Um jovem tenor com uma voz também muito bela. Algumas imperfeições que atribuo à estreia ou talvez à má escrita de Massennet. Gostei do seu trabalho, como actor esforçou-se e empenhou-se muito fisicamente no papel. Outro bom cantor em palco.
Garrido - Carlo Guelfi. Pena a pronúncia do francês ser fracota, mas o libreto também não merecia melhor. Cumpriu como actor no papel de general (talvez algo forçado no tom melodramático).
Remigio - Yasuo Horiuchi. Esteve bem no papel de pai camponês francês, um personagem hediondo muito bem composto pelo barítono japonês.
Ramón - Carlos Guilherme. Cumpriu a rigor, continua a ter capacidade vocal e dignidade nas composições que faz.
Bustamante - Luís Rodrigues. Depois de alguns papeis em que se mostrou mais redondo vocalmente, com um fraseado mais elaborado e uma linha mais suave, esteve um pouco sacudido (nervos?) e a cantar em esforço, parecendo em stress. A sua voz de barítono quando se liberta desta forma de cantar fica muito mais bela.
Pronúncias no francês, em geral, fracas.
Toque de telemóvel - elemento de surpresa agradável para constrastar com a "música" de Massenet, um pouco de cor que melhorou, ou pelo menos não piorou, a obra.

Musicalmente esta produção é positiva na Cavalleria e positiva, tanto quanto a música o deixa ser, na Navarraise.


O melhor e o Pior - Os erros de uma programação musical concreta 

O fecho da mini temporada lírica do S. Carlos dá-se com duas óperas desiguais. De um lado temos a ópera verista italiana, uma Cavalleria Rusticana cheia de clichés e tiques que resumem numa hora e pouco toda uma cultura, uma música, uma linha melódica mediterrânea e inspirada. Do outro uma Navarraise escrita pelo homem que disse: "Eu não acredito muito naquilo que faço, mas o público gosta e o público tem sempre razão!". Mascagni e Massenet. Um jovem inspirado e um hipócrita que dá aos burgueses ignorantes o que eles querem ouvir. Não admira que apareça em caricaturas da época a dar ao realejo da Opera de Paris.
E assim se provou mais uma vez no S. Carlos como a história teve razão ao eleger a Cavalleria para o primeiro plano e deixar no esquecimento mais uma das trinta óperas de Massenet que ninguém escuta. Uma obra prima cheia de conteúdo tanto musical, como lógica na concisão de um libreto contendo tudo e uma obra desgrenhada, cheia de tiros de mosquete, berros e gritaria, sem qualquer lógica dramática, sem solução de continuidade, intercortada por urros nos trombones e nas percussões, barulho que os burgueses gostam e uma enorme dor de cabeça depois de ouvido no S. Carlos. Harmonia pobre e vulgar, cadências e meias cadências sem continuidade, acordes suspensos aqui e ali em fortíssimo nos metais, bombos piores que os dos Zés Pereiras e clichés repetidos até à exaustão, temas horripilantes, frases sem princípio meio e fim, escrita vocal sem prosódia, barulho, mosquetes e mais mosquetes e plágio descarado de Mascagni, mas sem perceber, sem entrar na filosofia do italiano e a fingir que não, o que ainda é mais aberrante. Nesta "ópera" um toque de telemóvel foi bem vindo!... Massenet longe do Werther, que já não é grande coisa, é do mais abominável que se pode imaginar. Desde Vianna da Motta, que disse o mesmo, que se sabe em Portugal, na Europa sabe-se muito antes, porquê repetir o erro e não deixar isto a apodrecer até ser redescoberto por outro director teatral daqui a trezentos anos?
Veja-se o que diz Bruno Peeters na revista Forum Opéra:

Après une jolie carrière initiale, l'œuvre est toutefois tombée dans un certain oubli, dû sans doute à l'omnipuissance d'une intrigue tellement dramatique qu'elle en étrangle la musique, trop souvent réduite aux fusillades et canonnades. Même le personnage fort d'Anita ne parvient musicalement à n'être qu'une esquisse, bridée par l'action impitoyable. La Navarraise manque de souffle, d'étalement dans le temps, et Massenet ne put lui donner l'ampleur nécessaire. L'opéra restera une curiosité, intéressante sans plus, hélas.

E este crítico é, no mínimo, demasiado generoso.
A Obra Prima e o escarro musical, no mesmo dia no S. Carlos. É neste contexto que acho a programação da Navarraise, uma peça ordinária de museu (tipo bric-a-brac), uma curiosidade sem valor artístico, um anacronismo, que não se pode justificar num Teatro que não tem muito dinheiro para produções. Sei que se aposta no inusitado, até para marcar a produção do Teatro no exigente mercado da ópera a nível internacional, mas programar Navarraise é esbanjar dinheiro. Ouvir semelhante aborto musical é como observar os acidentes da auto-estrada com curiosidade mórbida. Uma temporada lírica sem Wagner, sem Bizet, sem Puccini, sem (agora que foi cancelada) Mozart e com este Massenet é uma aberração. É certo que se poderia argumentar que não se sabia que a temporada seria truncada, mas mesmo assim programar lixo não me parece fazer muito sentido. Por outro lado a ordem da apresentação das óperas é errada, no meu entender, primeiro deve-se ouvir a chinfrineira do Massenet e sair com a boa impressão da música de Mascagni. Massenet deixa gosto amargo após o canto deslumbrante do Sul. O meu conselho a quem vai a S. Carlos: se não tem curiosidade mórbida assista à primeira parte e depois vá jantar. Vale a pena pelo Mascagni.


Puccini e Mascagni no funeral de Leoncavallo

Finalmente, depois de alguma exaltação e mau humor produzido por música muito má ( Massenet neste caso), que me arrasa os nervos e deixa doente e mal disposto, agora que já descarreguei um pouco a bílis, acrescento que apesar do Massenet, apesar dos cortes orçamentais, apesar das aldrabices dos políticos do anterior governo, foi uma temporada com um balanço positivo, uma lição para o futuro. Este ano de 2005 exige reflexão e ponderação. Espera mais investimento na cultura, mas nunca se sabe, veremos ...


22.3.05

O Espião 

Segundo me informaram um chamado "espião" da Antena 2 assistiu ao concerto do Divino Sospiro, agrupamento a que estou ligado e do qual evito falar aqui por motivos óbvios. Como a situação é tão ridícula nos comentários feitos por quem assistiu ao concerto que não me posso dispensar de deixar aqui a inscrição. Para que fique a exposição pública.

Segundo me informaram foi dito no programa "Acordar a Dois" que o concerto no Centro Cultural Olga Cadaval não podia ser criticado porque "a orquestra passou muito tempo a afinar" e que "hoje em dia já não há orquestras que usem cordas de tripa".

Os comentários são tão imbecis que nem precisam que se rebatam. Apenas merecem um comentário:

Uma rádio nacional paga com os impostos de todos tem ao seu serviço, a receber, gente sem quaisquer conhecimentos e que se arroga o direito de julgar o trabalho dos outros. Nem é uma questão de amadorismo que está em causa, quem fala assim nem amador consegue ser. Fala a enorme arrogância da ignorância e da estupidez.

Pergunto-me se terá sido o mesmo imbecil que disse mais ou menos "Orquestra de S. Petersburg é de má qualidade, decepcionante, e que hoje em dia já não se justificam orquestras assim!" E essa ouvi eu próprio.

Mais um exemplo da estupidez pequena e provinciana que condena este mísero burgo a ficar pequenino de ontem para hoje e amanhã. A bem da Nação e do dinheiro dos nossos impostos: RUA!

21.3.05

No Dia Mundial da Poesia… 


E em todos os outros dias... as palavras de Rainer Maria Rilke:

"...mas o que significam os versos quando os escrevemos cedo demais? Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), — são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos, em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe — e em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos, em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurando alto e voaram com todos os astros — e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual à outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é precidso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso."

(Trad. de Paulo Quintela)


16.3.05

William Christie na Gulbenkian 

A extraordinária orquestra Les Arts Florissants e os solistas do Jardin des Voix apresentaram um concerto no sábado 5 de Março. Já toda a crítica se pronunciou. É tempo de ficar aqui o registo!

Programa:
LES ARTS FLORISSANTS
WILLIAM CHRISTIE (maestro)
AMEL BRAHIM DJELLOUL (soprano)
CLAIRE DEBONO (soprano)
JUDITH VAN WANROIJ (soprano)
XAVIER SABATA COROMINAS (contratenor)
ANDREW TORTISE (tenor)
ANDRÉ MORSCH (barítono)
KONSTANTIN WOLFF (baixo)

Henry Purcell - The Indian Queen (excertos)
Domenico Mazzochi - La catena d’Adone (excertos)
Luigi Rossi - Un peccator pentito: «Spargete sospiri»
Michel Lambert - Que d'amants separez languissent nuit et jour (excertos)
Marc-Antoine Charpentier - Venus et Adonis (excertos)
Jean Desfontaines - Le désespoir de Tirsis (excertos)
Jean-Philippe Rameau - Pigmalion: «Fatal Amour, cruel vainqueur»
André Campra - Enée et Didon (excertos)
George Frideric Handel - Radamisto II (excertos) e Amadigi: «Minacciami, non ho timor»
Wolfgang Amadeus Mozart - Ascanio in Alba, K.111: « Al chiaror di que beirai»
André-Ernest-Modeste Grétry - Zémire et Azor: «Veillons mes soeurs»
François-André Danican Philidor - Tom Jones (excertos)

Extras: Excerto de "Les Indes Galantes" de Rameau e mais um excerto de Tom Jones de Philidor.

Um projecto pedagógico fundamental de William Christie que na companhia do grande cravista Kenneth Weiss dirigem a Academia do Jardin des Voix. Os cantores são seleccionados entre centenas de jovens estudantes que concorrem aos disputados lugares na Academia. Estes concertos são uma espécie de mostra do trabalho desenvolvido. Por esse motivo se justifica a variedade do programa. A encenação de Vincent Boussard com orquestra em palco e que se cingiu a marcações e movimentos dos cantores realçando a expressividade das obras foi outro factor pouco habitual mas não inovador. A encenação, foi no meu entender, totalmente conseguida e melhorou claramente a recepção da música. Totalmente enquadrada no contexto musical e dramático contribuiu para uma precisão conceptual dos momentos musicais pelos sublinhados expressivos da movimentação cénica.

Foram ditas muitas coisas sobre este concerto, nomeadamente que os cantores não eram homogéneos, ou que a orquestra era um modelo de afinação, que as vozes femininas eram ácidas e mais alguma conversa de amador sobre o assunto. Na minha opinião há dois aspectos a destacar: vozes e interpretação dos cantores. Interpretação e concepção global das obras em presença. Superlativo na música francesa William Christe falhou na expressividade italiana de Mazzochi, interpretado com um claro sotaque francês nas acentuações, no fraseado, no final de frases e mesmo na ornamentação. Tudo o resto foi excepcional, Rossi teve a inspiração do sofrimento e uma beleza vocal deslumbrante de sentimento. Até o banal Gétry teve requintes que mereceram a sua inclusão no programa. Purcell teve de novo alguns problemas idiomáticos, mas o estilo francês da orquestra e do maestro enquandram-se bem neste compositor, que teve uma leitura muito viva e colorida.

Os cantores homens e mulheres foram quase sem excepção perfeitos. O que foi confundido com acidez na vozes femininas é uma forma de cantar sem vibrato, no extremo da afinação, realçando uma certa fragilidade. Há quem goste, há quem deteste. Não se pode condenar. Eu, no meu caso considero essa produção de som de uma beleza sem par, de uma realidade histórica que a minha intuição me diz ser a mais adequada à música francesa do século XVII e mesmo à música de Handel. Neste aspecto a ária de Ascanio de Mozart foi interpretada de forma muito arriscada por Amel Brahim-Djellou, mas o risco compensou!

O contratenor catalão Xavier Sabata mostrou-se como um valor de presente seguro e de futuro certo. Uma voz plena e pujante, de uma extensão admirável, naturalíssima, com uma musicalidade e um sentido dramático profundo deu-nos um Handel de encantar.

O temperamento Valotti, foi a solução de compromisso para todos os géneros, todas as nações, todos os períodos, todas as tonalidades! Um compromisso que adocicou um pouco no mais antigo e endureceu no mais recente, mas com este programa é difícil encontrar um temperamento versátil para todas as situações.

A orquestra esteve entre o bem e o excelente, mas não esteve ausente alguma desafinação, ao contrário do que se afirmou em alguma imprensa. Trataram-se de situações pontuais nos violinos e não comprometeram o concerto.

Em resumo: uma mostra de talento notável numa geração totalmente nova de cantores e uma afirmação de saber e classe na música barroca francesa e em Handel.

15.3.05

Bösendorfer 

Recebemos por email as amáveis palavras, devidamente identificadas:


Olá, Henrique

Infelizmente a Bösendorfer remodelou o seu 290 que permanece em fabrico, mas já não sob a designação de Imperial, apenas 290, e sem os tais 17 graves suplementares.
Deva-se referir que o piano melhorou imenso pois o antigo "Imperial" era indomável e os tais graves adicionais muito instáveis na afinação (não havia cravelhas que aguentassem a força daqueles bordões que cediam à mínima variação de temperatura e de pressão).


Realmente o modelo mudou de nome (deixou o cognome de Imperial), e segundo fui informado pelo autor do email a produção da companhia deixou de ser artesanal.
No entanto creio que o modelo 290 continua a ter uma maior extensão que o modelo mais imponente da Steinway, pelo menos assim o enuncia o site da Bösendorfer. Este modelo terá mais onze teclas na região grave que permitem uma descida aos infernos do dó-1 (pouco mais de 16Hz com o diapasão a 441Hz). O email acima é, aliás, muito útil numa correcção que pretendo fazer: Une Barque sur l'océan de Ravel foi escrito a pensar num Erard que podia atingir o sol-1. O Bösendorfer 290 Imperial descia mais grave.
Fotografia do modelo 290 (ex-imperial)


O Crítico Acertou 


Santana na Câmara

Tal como foi dito aqui anteriormente, muito antes das eleições, Santana Lopes regressa à Câmara de Lisboa. O pesadelo continua, parte III. Foi eleito, deve ser responsabilizado. O regresso à Câmara é para mim o apogeu da cegueira política de Santana. Terá uma derrota (ainda mais) humilhante nas autárquicas. Mas há-se tentar regressar ainda mais vezes.
Em Portugal a memória é pequena e a vergonha ainda menor. Como diz José Gil no seu brilhante pequeno livro "Portugal, Hoje - O medo de Existir" em Portugal nada se inscreve.
O pior primeiro ministro desde o 25 de Abril e um dos maiores vazios de ideias, de cultura e de objectivos ainda mexe e prepara o futuro. Portugal: um país mau para realistas e terrível para pessimistas.
Um facto tão óbvio que nem mereceria mais comentários não fossem os ecos mediáticos que andam à volta de um tema banal. A mediocridade no governo das autarquias é tão grande que mais um outro vai dar ao mesmo.

Sócrates

Sócrates, outro vazio de ideias, consegue apresentar como fuga a um vácuo imenso uma pérola que tira do saco: medicamentos nas grandes superfícies. E os desgraçadinhos andam a discutir o assunto desde sábado. É assim a classe jornalística, é assim que funciona este país. Recuso-me discutir este assunto no seu plano imediato, é-me indiferente. Apenas registo o assunto, numa meta análise do concreto. Um registo, a tentar fugir ao óbvio, a tentar fugir ao José Gil.

Mário Vieira de Carvalho

Mais uma vez acertámos ao dizer que o grande Jolly não estava disponível para aceitar o cargo de secretário de Estado da Cultura. O distraído compositor que foi atropelado oito ou nove vezes, não tenho a certeza, foi substituído pelo distraído musicólogo que se esqueceu de cumprimentar o presidente da república durante a tomada de posse (fonte: O Público). Aqui vai o meu elogio para Vieira de Carvalho, nem a função nem o homem merecem grandes cumprimentos. O musicólogo começa assim de forma digna e auspiciosa o seu mandato na Secretaria de Estado da Cultura.

14.3.05

Bösendorfer Imperial 

O Bösendorfer imperial é um piano com oito oitavas e 97 teclas. A ressonância proporcioada pelas cordas graves que dispõe mais dá sonoridades de grande riqueza. É o modelo 290 da companhia austríaca, trata-se do piano com maior extensão o que é obtido juntando (quase) mais uma oitava nos graves. Isto a propósito da crítica de Bernardo Mariano ao concerto de Artur Pizarro em que se diz que o piano não teria capacidade de dar toda a riqueza do Ravel. A peça Une Barque Sur l'Océan dos Miroirs tem precisamente um sol grave que pode ser tocado pelo modelo 290, a peça foi composta expressamente para um instrumento com as características do Imperial. A execução naquele Steinway (no S. Luiz) não será certamente errada, mas não explora todo o conceito da composição.
Creio que será este o sentido das palavras do crítico do DN no jornal de domingo.


Sobre notas erradas 

Surgem frequentemente comentários de alguns músicos perante a crítica "passou o concerto a dar notas erradas", chamam a quem diz isso, algumas vezes com desprezo: "contabilista de notas erradas" ou ainda que "dar notas erradas não tem importância nenhuma".
Bem, já sabemos que se um intérprete dá algumas notas erradas numa interpretação pensada e de grande estilo, é quase indiferente o choque de ouvir de vez em quando uma nota errada.
Quando se criticam notas erradas é por razões diversas. Uma interpretação deve ter por detrás estudo e técnica. Se um intérprete passa um concerto aflito a dar notas erradas, nem se pode passar a discutir qualquer conceito estético. Por muito boas que sejam as intenções do intérprete e das suas ideias, estas não passam, ficam na sua cabeça e não chegam ao receptor.
Um concerto em que apenas se ouvem notas erradas, em que estas perturbam seriamente a audição, em que estas destroem qualquer possibilidade de conceito, é um desastre interpretativo. A contabilidade das notas erradas é pois um dever do crítico. Um dever infeliz de informar para ajudar a superar os lados técnicos. Se a contabilidade se tornar pesada nem se pode avançar mais. Sem uma boa técnica nunca haverá arte e poesia, apenas intenções.

12.3.05

Os factos avulsos do dia 

Em tempos de posses sabemos que foi convidado o musicólogo Mário Vieira de Carvalho para secretário de Estado da cultura. Carvalho aceitou. Parece que Jolly Braga Santos não estava disponível.
A ministra da educação disse "eu abaixo assinado", no que foi logo corrigida por Isabel Pires de Lima que na sua vez disse: "Eu abaixo assinada". Para quem tem de dar educação à rapaziada não está mal não...
Entretanto o professor Jorge Calado brinda os leitores do seu espaço de crítica com uma "caralhada":



Solução para o problemas dos telemóveis 

Criar um ecrã electromagnético nas salas de espectáculos que impeça a radiação de penetrar nos edifícios. A solução é cara.
A expulsão da sala é uma medida óbvia que devia estar consagrada em lei (creio que até está, quem perturba um concerto pode ser removido da sala), bem como a natural tipificação de contravenção com aplicação de uma coima muito elevada.
Os bilhetes deveriam mencionar estas possibilidades.
Mas o problema é de mentalidade, e não globalizo, em mil pessoas que podem estar num concerto basta um selvagem ou um distraído para arruinar o mesmo. Sem esquecer que o bronco que deixa o telemóvel ligado num espectáculo muitas vezes nem tem consciência de estar a ser incorrecto.
A única solução que resta é punir e publicitar a punição. Infelizmente.


11.3.05

A Oficina do Lixo 

Um belíssimo nome para uma editora.
Já estará registado? O que é certo é que já existe uma...


10.3.05

Vinte e cinco anos de carreira atropelados por um telemóvel 

Pianista abandona recital comemorativo dos 25 anos de carreira após vários toques de telemóvel

Eram os 25 anos de carreira de Artur Pizarro que se celebravam hoje no Teatro de S. Luiz em Lisboa. Artur Pizarro fazia um recital memorável, que não acabou...
No programa Miroirs de Ravel, a primeira interrupção no início do trecho "La vallée des cloches" que encerra a obra, porque um telemóvel não se calava. Os toques aliás multiplicavam-se. Ouvia-se gente na conversa no exterior da sala. O pianista reiniciou o "la vallée..." e o recital voltou à normalidade com a rapsódia espanhola de Liszt.
O Ravel foi de uma transparência, de uma clareza e beleza sonora que só por si justificariam uma ida ao S. Luiz. Uma rapsódia de Liszt que não é uma obra muito interessante mas que resulta se o pianista tem um grande virtuosismo e se toca com liberdade total. Não foi o caso, Artur Pizarro a tocar pelo papel não se libertou, teve de olhar para o teclado para ver onde punha as mãos nos acordes mais intensos, a fluidez e o ritmo da obra ressentiram-se. Chegou ao ponto de ser um pouco trapalhão. Seria provavelmente o ponto menos conseguido do recital.
Segunda parte, "Suite Bergamasque" de Debussy. Um prélude fantástico, um menuet comovente, com uma elaboração sonora e musical a atingir a perfeição mágica que resulta do entendimento total da obra e da arte de criar timbres e sonoridades. O fraseado em Pizzaro é excelente e equilibrado nas duas mãos. A mão esquerda é irrepreensível. No menuet esta mão esquerda criou poesia através da recitação de uma das melodias mais belas da história da música, melodia que muitas vezes fica enterrada nas entranhas da obra. Um clair de lune belíssimo sem cair no sentimentalismo e, de repente, antes do andamento terminar, mais um toque de telemóvel. Era a quarta vez, sem contar outros ruídos parasitas. Pizarro pára de tocar e diz com palavras exactas: "quanto atender eu volto a tocar, mas saia" [mais correcta a citação do DN de sábado por Bernardo Mariano, palavras exactas: atenda que eu páro, mas saia ]. O pianista olha em volta, a pessoa que tinha o telefone a tocar insistentemente, e com o volume no máximo, nem atende nem sai. Pizarro, por seu turno, levanta-se e sai. Palmas. Alguns minutos depois Jorge Salavissa (o director do teatro) anuncia que este momento tão especial para o pianista ficava por ali. O recital estava terminado.

Nem vou comentar, a situação fala por si, foi demasiado triste. O público aplaudiu Artur Pizarro durante largos minutos, o pianista não regressou, com razão.

Uma questão de vida 

Segundo se diz no último ano o número de mortos na estrada reduziu-se de 17% face ao ano anterior.
Embandeirou-se em arco, afinal temos civismo, as campanhas resultam, o povo automobilizado está mais civilizado, etc, etc, etc...

Será que ninguém se lembra que o último ano foi o mais seco dos últimos setenta anos?


9.3.05

O Elogio de Rockwell Blake 

A Dama do Lago de Rossini


Rockwell Blake
(Foto antiga)

O teatro Nacional de S. Carlos apresentou em versão de concerto a Ópera de Rossini: La Donna del Lago. Já aqui foi escrito que Rossini é o maior génio natural da música do início de oitocentos. Acrescenta-se a isto o savoir faire, a capacidade de escrever de forma confortável e inteligente para a voz, independentemente da dificuldade técnica do que exige aos cantores. Rossini é um génio eterno, seja na ópera Buffa, seja na ópera séria e o Guilherme Tell e esta Dama são outras tantas provas da capacidade do compositor.
Rockwell Blake, homem de 54 anos, grande cantor rossiniano mas como actor sempre foi um pouco "canastrão", esse facto impediu sempre uma maior projecção na sua longa e, apesar de tudo, excelente carreira. Hoje em dia destaca-se como professor nos Estados Unidos de onde é originário. As suas incursões no palco estão muito reduzidas, por vontade própria.
Foi um privilégio ter Rocky Blake no S. Carlos, pensava que não mais poderia escutar este tenor ao vivo. A doença de Florez retirou um talento vocal do S. Carlos mas trouxe um estilista. A "questão Florez" foi resolvida de forma muito séria pelo Teatro, não creio que mais ninguém no mundo, pudesse em pouco tempo apresentar um tal papel, bem preparado e com agenda livre.
O esboço de pateada no S. Carlos foi, mal educado, estúpido e imerecido. Mal educado porque nunca se pateia um cantor que fazendo das tripas coração vem salvar uma produção, um cantor que teve de cantar em cima da hora, sem preparar ao longo de meses um papel. Um cantor substituto não tem culpa da situação e tem um lugar ingrato, se não se gosta poupam-se as palmas. Bater com os "cascos no chão" (como diz Jorge Calado no Expresso) é um acto que, nesta situação, indignifica quem o pratica.
É estúpido e imerecido porque o cantor cantou muitíssimo bem, se em Flores tinhamos uma voz, em Blake temos um estilo, quem não se apercebeu dos dotes de Rockwell não pode ter muita inteligência. Em Rockwell Blake temos uma voz suave, muito bem apoiada nos agudos, o recurso muito bem utilizado da voz de cabeça, um fraseado límpido, uma capacidade de articulação muito elevada e, pode-se dizer com toda a certeza, uma leitura musical de grande elegância. Um tenor agudo de Rossini como ainda há raros no mundo. Foi dito que a sua voz era um "destroço". Não me parece, a voz muda com a idade. Um cantor não é um velocista dos cem metros. Relembro o fantástico Krauss, tive oportunidade de o escutar ao vivo durante mais de vinte anos (escuto música desde os cinco). Percebi que a sua voz foi mudando, que se tornou "mais pequena", mas a sua subtileza, a sua inteligência compensavam essa natural evolução de voz. Não me interessa ouvir um rapaz de trinta anos com uma voz deslumbrante se não souber utilizar o instrumento, veja-se a Angela Gheorghiu! Rockweel Blake foi notável na estreia, entrou um pouco inseguro, quem não o estaria, mas encontrou-se e fez um último acto notabilíssimo. Quer em cenas de conjunto, quer nas árias. Escutei pela rádio numa récita posterior e ainda fiquei mais convencido das qualidades de Rockwell.
Falta dizer que uma versão de concerto é ideal para escutar este tenor, que, como disse antes, nunca foi um grande actor.
O outro tenor, Robert Mcpherson em Rodrigo, foi impressionante na sua entrada em cena, por quatro razões: uma voz poderosa, extensa, desafinada e rústica! Mcpherson tem dotes vocais de elevado nível, mas o seu vibrato faz lembrar o de um bode. Um tenor que pode com o tempo tornar-se num dos grandes cantores do século XXI mas que tem de limar ainda arestas e trabalhar o estilo. Projecção não é tudo. Uma actuação quase no bom.
Duglas foi feito pelo baixo-barítono Simon Órfila. Médio, cumpriu com dificuldades embora tenha uma voz bonita e encorpada.
Elvira Ferreira e Mário João Alves foram muito eficazes, cantores portugueses que se mostram muito capazes em papeis de suporte. No caso de Mário João Alves, protagonista de uma ópera no Teatro Aberto, falaremos noutra ocasião.
A cantoras solistas Laura Polverelli e Silvia Tro Santaflé apresentaram-se totalmente agarradas ao papel. Silvia na ária da cena 7 não cantou, não interpretou, leu. E é uma das árias mais importantes de todo o repertório de Rossini. Uma prova de fogo. Chegou a ser confrangedor a atrapalhação em virar as páginas e não acabar a frase longa porque se esqueceu de respirar, a frase era muito longa e antes de virar a página não o sabia! Uma presença que poderia ter sido uma interpretação, a voz da cantora é bela, encorpada, densa e o estilo não é mau, mas poderia ter estudado melhor...
O mesmo se pode dizer de Laura Polverelli, canta muito bem, usa o corpo com propriedade, consegue retirar energias de um físico franzino. A voz é bonita, bem dotada de terceiro harmónico que lhe confere um metal elegante sem ser excessivo, mas andou agarrada ao papel e só a cena final, que deve ter estudado com maior rigor, lhe saiu fluente. Como é a prova de fogo da ópera é natural que tenha sido assim, mas como teria bom se tivesse preparado melhor o papel protagonista. Tem capacidade para cantar e estilo apropriado ao bem cantar rossiniano.

Riccardo Frizza, o maestro, esteve exemplar, já toda a gente disso isso, a dinâmica e os tempos foram notáveis, a vivacidade e a compreensão do texto e da música foram certíssimos. Extrair da orquestra o pensar rossiniano foi o seu maior mérito.
A orquestra esteve também bem, destaco o clarinete pela sonoridade e articulação. Os violinos tiveram os habituais problemas de afinação e de coesão nos momentos mais delicados, mas estes problemas foram pontuais.

O coro esteve francamente melhor. Continua a subir de forma, a gritaria não foi terrível! Já se pode dizer que o coro está a chegar aos 12 valores. Parabéns a Andreoli.


7.3.05

Fidelio - mais considerações 

Como não fundamentei em rigor o que escrevi (pouco) sobre o Fidelio na Gulbenkian, em versão de concerto, aqui vai um texto baseado nas notas que tomei no meu caderninho sobre esta interpretação.
A ópera Fidelio de Beethoven teve uma interpretação vigorosa de Foster e grandes solistas:
- Birgit Steinberger em Marzelline, correcta, bem colocada com uma voz de um timbre rico mas pouco potente, de qualquer modo com uma vocalidade totalmente adequada e uma interpretação amadurecida, não parecia ser uma cantora substituta.
- Herbert Lippert foi fracote, até no fato foi inferior aos outros cantores, o único sem casaca! Foi o pior cantar em cima do palco, descuidado e vaidoso, mal colocado, roufenho, fraseado pouco apropriado a Beethoven e alongado nas frases arrastando a música. E digam se a indumentária não é o sintoma de qualquer coisa por detrás...
- O baixo Reinhard Hagen foi excelente no seu papel de Rocco. O carcereiro foi muitíssimo bem caracterizado vocalmente. Noto o empenho de alguns críticos em deitar abaixo Lippert e em se esquecerem de elogiar o que de melhor esteve na Gulbenkian. Sinal das opções de cada um: se há poucos caracteres disponíveis num texto, certos críticos nunca exaltam o bom, apenas massacram o pior. Voltando a Hagen, a interpretação deste baixo foi imponente e decisiva para o sucesso da ópera, rústico mas com bom fundo assim me pareceu o Rocco, como deve ser aliás, de Hagen. Uma voz magnífica, boa em todos os registos. Apenas desafinou um pouco no início (voz mal aquecida?), nos graves.
- O D. Pizarro de Esa Ruuttunen foi para mim algo complicado. Percebi uma grande voz no cantor finlandês, mas a entrada zangada deste cantor foi demasiado aos gritos, autênticos berros. Sempre que tentava puxar pela potência vocal começava invariavelmente a gritar, o timbre tornava-se muito desagradável. Sempre que era mais "cantabile" percebia-se uma boa voz e alguma sensibilidade possível para o papel. Uma interpretação em que denotou falta de inteligência.
- Guardei para o fim a Leonora de Christine Brewer foi também fantástica. Uma voz pujante, encorpada, boa em todos os registo, equilibrada, aveludada apesar da força natural, domada o suficiente para fazer os pianos e pianíssimos. Apenas abusando um pouco da sua extraordinária projecção nas partes de conjunto, mas com uma voz assim, uma capacidade interpretativa elevada e inteligência, perdoa-se quase tudo.

A orquestra esteve francamente bem, apenas o naipe das trompas borrou a pintura nos momentos em que Beethoven deixou ao cuidado do difícil instrumento caracterizações decisivas e delicadas. Notas erradas, entradas esborratadas. Em momentos a coisa correu melhor, mas a actuação foi em geral desastrosa. Não se compreende o gesto de Foster ao mandar levantar o naipe numa das interrupções para palmas aos cantores que foram ocorrendo... Steve Mason esteve bem no trompete.
O coro esteve razoável, desafinações pontuais mas a energia foi o mote. A opção de um coro de mais de oitenta cantores em cima do palco da Gulbenkian é discutível, sobretudo se temos apenas o número anémico e ridículo de seis violoncelos! A falta de equilíbrio é evidente, sobretudo nas partes em fortíssimo, o coro torna-se intolerável em termos de potência sonora face a uma orquestra sem massa nos naipes graves. Um mínimo de nove violoncelos seria exigível se compararmos com os outros naipes dentro das cordas. O coro dos prisioneiros foi cantado com convicção e com a resposta dinâmica exigida pelo maestro.
Em resumo: a interpretação de Foster tem sempre a vantagem de ser entusiástica, propulsiva, o detalhe às vezes perde-se, mas ganha-se energia. É uma visão que dá vida e cor e se justifica plenamente com o resultado vivo e brilhante obtido.

Considerações 

Terminou uma semana fértil em acontecimentos. Fidelio na Gulbenkian, Dama del Lago de Rossini no S. Carlos, Beggars Opera no Teatro aberto e William Christie com Les Arts Florissants e Le Jardin des voix de novo na Gulbenkian.
Continua uma espécie de polémica, celeuma (segundo Jorge Calado no Expresso), sobre o título de Dionisio Re di Portugallo, com ecos que teimam em deixar de se escutar na imprensa. O rebarbativo Seabra continua a invocar o assunto sempre que pode, e ainda ontem e hoje retoma o tema nas suas colunas regulares no "O Público", no que creio ser apenas uma "auto-polémica" inventada pelo próprio para debater convulsivamente consigo mesmo.
De facto o título de Dionisio Re di Portugallo justifica-se por motivos de marketing e de cativação de público. Quem não percebeu isso não é muito dotado intelectualmente. A opção é justificável? É ética? A resposta é sim, claramente. O libreto original tinha esse título, o Rei é a figura tutelar da ópera, a personagem não é tão desenvolvida musical e teatralmente como o par Fernando de Castela/Elvida (porque não o título "Fernando e Elvida"?). Por outro lado o apelo português do título cativa algum público sem o enganar e é esse apelo que justifica o mesmo. Perdidos em elucubrações maniqueístas alguns críticos insistem no onanismo da manipulação de factos acessórios, factos que assumem, no entender destes, aspectos relevantes, mas que são absolutamente menores. O nome da obra nada tem a ver com o que está realmente em cima da mesa: a qualidade musical, o texto, a representação, o acto de apresentar uma ópera de Handel no S. Carlos.
Nos próximos posts será discutida a semana que decorreu.

4.3.05

Currículo académico 

Com oito professores catedráticos e um assistente no ISCTE, o governo de Portugal salta de um dos últimos lugares em currículo académico, uma espécie de governo dos cábulas que tinhamos antes, para um dos primeiros lugares em currículo no Mundo.
O governo pode vir a não prestar para nada, mas em currículo académico não estamos mal servidos. É o normal na política internacional, mas raro neste país.

Veremos

P.S. Do cartaz do PSD

Só voltou o do meio.


Perdão e Comunhão 

Felizmente o Provincial Franciscano de Portugal vem dizer que a comunidade Franciscana defende como filosofia de vida e de prática a comunhão e não a excomunhão, o perdão e não a intolerância. Essa é a mensagem do Fundador da Igreja, esse também o sentido das palavras e vida de Francisco.

A Igreja Católica, ao contrário do que muito dizem, não é uma instituição monolítica, é feita por homens, muitos deles pecadores como todos nós. Felizmente existe muita gente dentro desta comunidade, e os Franciscanos são um exemplo de uma rara dedicação, amor e de dádiva aos outros (da própria vida em situações terríveis) que não merece, não só os insultos que sofre por uma atitude de um irmão tresmalhado, mas que tomem a parte pelo todo.

O que é certo é que o anúncio do padre franciscano foi motivo de enorme contestação, de notícias de consternação. A afirmação da bondade de toda uma comunidade, reafirmada por um Provincial, do amor, do perdão, da comunhão, da não exclusão, da tolerância, não terão a menor repercussão. Para mim é uma novidade comovente, e não é uma notícia de hoje, é uma notícia com 2000 anos e que continua actual.

3.3.05

Desceram à capital e não tocaram mal 

Concerto no S. Luiz. Dia 2 de Março de 2005. Início do mês da música no S. Luiz.

Orquestra Nacional do Porto.
Direcção Marc Tardue.
Piano: Jorge Moyano.

D. Juan Poema Sinfónico de Richard Strauss

Concerto para piano em ré menor de Mozart, KV 466.
Allegro
Romance
Rondo (Allegro assai)

Sinfonia nº 3 de Brahms, Fá Maior op. 90.
Allegro con brio
Andante
Poco Allegretto
Allegro

Como o programa era muito escasso, nem sequer os andamentos tinha impressos, reproduzo aqui alguns sobre o concerto em ré menor de Mozart:

Foi completado em 10 de Fevereiro de 1785. Parece que, segundo Leopold então de visita a Viena a obra ainda estava a ser copiada para partes cavas no dia seguinte, ou seja no dia da estreia! "O concerto é esplêndido e a orquestra tocou de forma soberba" escreveu o pai do compositor numa carta à irmã de Mozart. O primeiro de uma série de seis concertos que surgiram em seis sextas feiras consecutivas de 11 de Fevereiro até 18 de Março.
Tratou-se de um sucesso musical, financeiro e de marketing para Mozart, uma vez que toda a gente influente de Viena assistiu a este autêntico tour de force de Mozart. Seguiram-se dois anos de sucessos e de bem estar financeiro.
Beethoven gostava muito deste concerto, escrito na tonalidade sombria de ré menor, e escreveu cadências notáveis para o mesmo. O próprio Brahms também escreveu cadências para este concerto.

Dados sobre a sinfonia de Brahms:

Foi escrita no Verão de 1883 em Wiesbaden onde a sua amiga cantora (contralto) Hermine Spies vivia. Brahms tinha 58 anos. Como de costume as férias de lazer tornaram-se em férias de trabalho. A estreia foi a 2 de Dezembro de 1883 com Hans Richter a dirigir a Wiener Philharmoniker. A obra foi um enorme sucesso. Eduard Hanslick, o célebre crítico, amigo de Brahms e altamente conservador (diria mesmo reaccionário) declarou que se tratava da mais perfeita das sinfonias de Brahms: "A mais compacta na forma, a mais clara nos detalhes". Foi tocada em Berlim, Leipzig, Meiningen e Wiesbaden, ainda em vida de Brahms. O próprio Brahms ficou um pouco desagradado com a popularidade que a sinfonia tomou!

A orquestra do Porto nos primeiros acordes do poema sinfónico D. Juan começou com uma sonoridade feia mas com o decorrer do concerto melhorou francamente, provavelmente foi-se adaptando à acústica do Teatro.
Gostei muito do naipe dos trombones e das trompas, dos clarinetes, oboés, flautas e sobretudo das cordas. Tardue conseguiu atribuir à orquestra um grande equilíbrio. Creio que o modelo de sucesso para uma orquestra jovem é manter um maestro competente como Marc Tardue à sua frente. Com excepção de alguns pizzicatos desfasados, a orquestra trabalhou muito bem o poema de Strauss. Metais com contenção mas com belo som, linhas densas e coesas nas cordas, solos de violino com plasticidade, articulações uniformes em todos os naipes. O melhor do concerto foi este D. Juan de Strauss feito numa leitura linear de Tardue sem grandes elucubrações filosóficas mas com competência.

O concerto de piano foi bastante razoável pela parte da orquestra, mantendo sempre um ritmo vivo e certo, dando certezas ao pianista (e não armadilhas rítmicas e insegurança como vimos no mesmo teatro com a OSP relativamente a este mesmo pianista no quarto de Beethoven algum tempo atrás). Não se pode dizer que a orquestra tenha estado muito exaltante, mas esteve correcta.
Parece que Moyano acusou algum receio de falhar, creio que tocou a medo. Não sei se teve muito tempo para ensaiar com a orquestra, mas palpita-me que não. Nunca se libertou ou se esqueceu de uma certa prisão técnica o que resultou em alguma insegurança. O seu pianismo e a sua extraordinária sensibilidade vieram ao de cima em alguns belíssimos momentos nomeadamente no "romance", mas ficou uma sensação de algo que faltou: a criatividade artística liberta dos detalhes da técnica...

E foi isso que faltou em Brahms. Uma bela orquestra, raramente a falhar: atenção trompetes nas entradas de acordes gerais (gritante no final do último andamento e do primeiro). Sonoridades muito belas, instrumentistas de grande qualidade nas madeiras, cordas formando um corpo de alto nível técnico, resolvendo as passagens mais exigentes com um conjunto com alto nível, incluindo articulações complicadas ritmicamente.
Mas faltou algo: a exaltação da obra, o lirismo do terceiro andamento, feito de forma demasiado elegíaca, demasiadamente arrastado e pouco exaltante. Morno. Marc Tradue mostrou competência técnica, mas falta-lhe algo em termos artísticos, coisa que resulta evidente numa obra de fôlego como a sinfonia de Brahms. Talvez haja saturação, talvez a orquestra precise agora de maestros frescos para irradiarem alguma energia criativa e fazerem a sonoridade sair do habitual, do pastelão. Sem deslustrar a competência de Tardue creio que a sua fase está a precisar de ser temperada com novas energias. Ser competente não é tudo, às vezes é necessária a transcendência e o risco.

Apesar de tudo um concerto razoável com uma orquestra muito séria.

Bella Madre dei FIori 

Uma maravilhosa cantata de Alessandro Scarlatti o grande compositor nascido em Palermo. Quem não conhece Scarlatti poderá perceber através da pungente e belíssima sinfonia de abertura a influência que Scarlatti deixou noutros compositores bem mais avançados no século XVIII, v.g. Pergolesi.

Três discos possíveis:
Na Harmonia Mundi Marc Aymès e concerto suave. (Uma boa interpretação)
Na Tactus: com Guido Morini na direcção.
Na RCA Victor: com Nicholas Mcgegan.

Muitas mais há, Rinaldo Alessandrini e Gerard Lesne também gravaram muitas das cantatas de Scarlatti.


Carissimi 

É Giacomo Carissimi o visado do último post. João Chambers, autor do programa Musica Aeterna na Antena 2 (sábados 23h), poucas horas depois de lançado o desafio respondia. Curiosamente, e há de facto coincidências, ontem entregou o programa sobre Carissimi que vai para o ar dois dias antes de se comemorarem os 400 anos do seu nascimento, o programa passa a 16 de Abril, dois dias antes da provável data de nascimento do grande compositor.

Foi precisamente por passarem 400 do seu nascimento que resolvi pegar no tema, ninguém se lembra de Carissimi, nem Antena 2 (com excepção de João Chambers), nem programadores, nem Festivais, nem Gulbenkian, nem ninguém!

O mesmo esquecimento a que foi votado Charpentier (com honrosas excepções entre as quais as leçons de ténèbres da Gulbenkian com Christophe Rousset) no ano de 2004. Eu bem que passei nos programas da rádio Luna o máximo possível de música de Charpentier, mas a rádio acabou no início de 2004 e acabou-se o Charpentier. Carissimi não é caro em Portugal. De modo que recomendo vivamente a audição do programa Musica Aeterna de 16 de Abril, Antena 2 da RDP pelas 23h.

Um outro apelo que faço é a inclusão de Carissimi nos programas dos Festivais de Verão que ainda não viram a sua produção fechada.


Pelos alunos se vê o mestre 

A sua música é notável mas muito pouco escutada entre nós. É um dos maiores mestres da histórias da música, entre os seus discípulos contam-se Marc-Antoine Charpentier e Alessandro Scarlatti além de muitos outros.
Segundo o seu obituário no Mercure Galante (uma gazeta francesa onde Charpentier tinha alguma influência) "era um dos maiores mestres que tivemos desde há muito tempo"...
Nasceu em 1605 perto de Roma e faleceu em 1674 em Roma. A sua obra é imensa, conta missas, motetes em latim, cantatas italianas, oratórias, mas infelizmente a atribuição da sua obra em manuscrito é muito difícil. Só sobreviveu um manuscrito autógrafo, tudo o resto serão cópias. Felizmente editou muita música em vida.
Numa das maiores desgraças para a história da música, infelizmente tão frequentes (também aconteceu com o incêndio do castelo de Dresden onde estavam os manuscritos de Schütz), os arquivos Santo Apolinário em Roma onde repousavam os manuscritos deste compositor foram destruídos com a dissolução da Ordem dos Jesuítas em 1773.

Falamos de quem?


1.3.05

Ainda Handel -Impressões musicais 



Um pouco tarde, comento a interpretação de Alan Curtis, da orquestra e dos cantores em Dionisio Re de Portogallo. Ópera que subiu à cena no TN São Carlos em Lisboa. Comento na média das duas récitas a que assisti. De referir que todas as citações ao original são obviamente referências à versão final da ópera que se viria a chamar Sosarme Re di Media.

Fernando di Castiglia – Lawrence Zazzo, um belo contratenor, cantou muito bem, ornamentou e representou com alma. Interpretação musical de grande qualidade e voz suave e com bela projecção. Um digno sucessor de Senesino no papel criado há 270 anos. Muito bom nos duetos com Simone Kermes.

Elvida – Simone Kermes, um soprano muito consistente no barroco. Voz clara mas bem timbrada, muito bem na articulação, graves razoáveis, agudos na primeira récita muito em stress, na segunda récita esteve francamente melhor. Boa actriz. Gostei muito, na segunda récita, dos ataques das notas, ataques de uma incrível suavidade.

Marianna Pizzolato – Isabella, um contralto de altíssimo nível e para mim a melhor cantora em cena. Quer pela vocalidade, quer pela interpretação musical, quer pelo dramatismo. Uma voz densa sem deixar de ser aveludada.

Sancio – Max Emanuel Cencic. O contratenor que fez o papel destinado originalmente a um contralto feminino cumpriu com rigor o que se lhe pedia. Não tem a pujança de Zazzo, mas tem musicalidade e sentido dramático. A voz é bem colocada e a articulação barroca muito cuidada.

Alfonso – Michele Andalò. O futuro Afonso IV foi entregue a um contratenor jovem e com voz pouco consistente, ainda a precisar de algum trabalho de aperfeiçoamento. A projecção não era ainda totalmente indicada para um papel deste tipo. Campioli o castrato criador do papel teve como sucessor um contratenor médio mas com capacidade de evolução. Dramaticamente bem enquadrado no papel de filho rebelde. Acabou por ser razoável no conjunto e não mereceu o esboço de pateada da primeira récita.

Altomaro – Vladimir Baykov, este baixo deveria ter cantado um dos papeis mais importantes da ópera: o de vilão motor da intriga, não conseguiu. Dotado de boa voz mas muito mal aproveitada, desafinou todo o tempo, sobretudo nos graves, e demonstrou graves problemas no estilo barroco. O vibrato muito pronunciado e a declamação muito enfática, ao estilo da ópera do século XIX, não ajudaram uma performance muito má nos dois dias a que assisti.

Dionisio – Stefan Rankl. O único tenor em cena, um papel pomposo de Rei, foi consistente e correcto sem ser exemplar. Gostámos da sua posição em palco. A sua voz não é de uma grande beleza, mas compensa colocando bem e interpretando condignamente a música de Handel.

Todos os cantores estiveram melhor na segunda récita menos Baykov que esteve sempre muito fraco.

Alan Curtis é um maestro um pouco excêntrico ao “circuito da moda” da música antiga (leia-se barroca) actual. Como cravista sempre foi pouco arrebatado mas consistente, competente. Competência é a palavra correcta. Attilio Cremonesi com o Giulio Cesare de Sartorio (ano passado, Innsbruck) reconstruiu a partitura mas não escreveu uma única cadência, os cantores limitavam-se a suspender um pouco a nota e... já está. No entanto “inventou” uma parte concertata para o seu instrumento, o cravo, que só com muita imaginação se pode conceber ter estado na partitura em 1670...
Alan Curtis escreveu cadências para as árias e além disso variou muito a interpretação quando havia repetição de secções. Ou seja, Curtis sabe do que está a fazer. Mas depois não atinge nem a perfeição nem o arrebatamento, nem (e aí o seu principal defeito) a beleza sonora de Cremonesi, por exemplo.
A música belíssima de Handel explica-se por si própria, tudo foi correcto: as articulações são correctas, as ornamentações apropriadas... A música está lá mas talvez falte aquela chama que transforma o bom no óptimo ou no transcendente.
Os instrumentistas e os instrumentos também não ajudaram. Correcto o uso de dois cravos,... se fossem de qualidade igual, mas a sonoridade dos instrumentos era totalmente diversa em termos de qualidade e em termos de potência, a consequência foi o desequilíbrio. O violoncelo desafinava sempre que tinha que tocar com o cravo mais distante, às vezes de forma terrível, como na segunda récita, em que acabou uma frase totalmente fora de tom num recitativo no acto final, provavelmente a distância afectava a correcta percepção sonora do som do cravo. Os oboés foram muito fracos na primeira récita, desafinados, notas trocadas, sonoridade muito feia, pareciam canas rachadas, felizmente melhoraram na segunda récita a que assisti. As trompas foram uma desgraça total nos dois dias a que assisti, felizmente tocam pouco tempo senão teria sido a ruína da ópera. O primeiro violino é também fraco como solista, tem uma sonoridade feia, fina, pouco densa e na estreia falhou redondamente passagens inteiras do seu solo numa das árias mais importantes da ópera, a ária mais pungente de Isabella, felizmente concentrou-se mais na quarta récita. Sem ovos não se fazem omeletes...
A impressão que fica é muito boa no campo vocal, boa (com altos e baixos) no campo instrumental e de competência em termos de direcção.



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